Como esperado, apesar da boa receptividade geral, minha última postagem sobre o feminismo na ciência, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, gerou, como sempre, alguma controvérsia (de leve...), por razões opostas. Alguns colegas das ciências sociais e humanidades acharam que eu não dei o devido crédito à visões mais relativistas e menos “ingênuas”, ou “positivistas”, da ciência européia e machista do século XVIII - XIX, enquanto aqueles das ciências naturais acham que estou fazendo concessões demais a essas visões. Entendo que os dois “lados” podem estar certos, tudo bem, é o preço que pagamos por ficar “no meio do caminho”... Mas, no caso dos colegas das ciências naturais, um dos pontos que me chamou atenção foi a crítica quando coloquei que seria válido pensar em políticas de ações afirmativas e que não haveria problema em fazer isso “ideologicamente”, com base em valores e princípios gerais de justiça social e considerando passivos históricos “bem conhecidos”, sem necessariamente ficar sempre querendo “medir” o efeito dessas políticas de forma mais “científica”, “objetiva”, “estatisticamente”! Não sou contra isso, muito pelo contrário, mas ao mesmo tempo entendo que isso deve sempre ser compreendido de forma "perspectiva" (e não "objetiva", pensando epistemologicamente).
Tenho discutido aqui no “Ciência, Universidade e Outras Ideias” minha visão de ciência em algumas das postagens, incluindo essa última sobre feminismo na ciência. Mais recentemente, essa visão tem sido fortemente influenciada principalmente pelo trabalho de Ronald Giere (1938 – 2020), mas talvez seja necessário em algum momento deixar tudo isso bem mais claro e explícito em algum momento, vamos ver... De qualquer modo, quero esclarecer rapidamente – sério – essa questão que causou mais dúvidas e que parece ser mais controversa, pois está fundamentada na ideia mais tradicional (entre os cientistas naturais) que a ciência é a única maneira de conhecer e perceber a "realidade" e que somos sempre capazes de "medir" objetivamente essa realidade, ao mesmo tempo em que tudo isso independe da conjuntura social e política e da perspectiva por meio da qual exergamos essa realidade. É fácil entender essa "subjetividade" a partir da complexidade de medir características ou componentes sociológicos e psicológicos humanos, o que leva inclusive à discussão sobre a classificação de muitas dessas áreas como "Ciência". Mas, segundo meus colegas das ciências naturais, tudo isso desaparece quando olhamos para a natureza e ai podemos definir clara e objetivamente a "realidade". Será? Vamos voltar para algo bem fundamental e pensar melhor nisso...
Aproveitando que recomeçamos as aulas de 2024 nesta última semana aqui na UFG, estava revisando meus slides e tive uma inspiração que me fez lembrar da discussão sobre as “medidas do tempo”. Nas minhas aulas da disciplina de "Paleobiologia" (sim, isso mesmo mesmo, e por isso falo bastante de dinossauros por aqui...) sempre insisto com o(a)s aluno(a)s, especialmente nas turmas da licenciatura em Ciências Biológicas, que a questão mais importante para ensinar e discutir com as crianças e adolescentes, no contexto de ensino de evolução (e ao participar dos debates contínuos com os criacionistas e fundamentalistas religiosos...) é o tempo geológico. É um grande desafio pensar nessas grandes escalas de tempo...Sempre digo para os alunos que temos o início do Cambriano e a grande diversificação dos metazoários a partir de algo como 530 milhões de anos atrás (aliás, chamo isso de "tempo paleontológico"), e que conseguimos escrever sem muito problema esse número e fazer operações com ele (pelo menos é o que espero...). Esse número é dado por análises geoquímicas sofisticadas a partir de decaimento radioativo ou outros métodos de geocronologia que me permitem hoje ter estimativas bastante confiáveis dessa escala de tempo, e discutimos várias dessas ideias na sala de aula.
Entretanto, é muito mais difícil pensar de forma abstrata e entender o SIGNIFICADO disso, no sentido do que pode acontecer nessas escalas de tempo, considerando a dinâmica evolutiva. Ou seja, conseguimos “escrever” e operar 530 milhões de anos, mas será que somos capazes de “cientificamente” compreender e absorver o significado deste número? Talvez, mas espero que vocês concordem comigo que agora deixou de ser trivial. Do que estamos falando? Estamos falando de quantas (e quais) mudanças no ambiente causando adaptações em algumas populações podem ter acontecido, criando inovações na morfologia, na fisiologia, no comportamento, que permitirão eventos futuros de diversificação, gerando novas espécies com características cada vez mais distintas, ao mesmo tempo em que tantas outras são levadas à extinção...Quantos processos diferentes atuando ao longo de bilhões de gerações para alguns organismos, o que podemos esperar disso? Como dizia Gould, “That’s a wonderful life” !!! E, aproveitando, gosto muito de usar a sua expressão “tempo profundo” para se referir à magnitude e o nosso “espanto” diante dessa dimensão do tempo e suas consequências em potencial (vejam também o seu fantástico “Seta do Tempo, Ciclo do Tempo”, para uma revisão e discussão sobre a descoberta do “tempo profundo”).
Realmente, entendo que temos naturalmente alguma dificuldade de lidar com isso (eu pelo menos tenho...), e acho que ela vem do fato de que nossa escala intuitiva de percepção do tempo, nossa experiência empírica e intuitiva, é de poucas décadas...Lembramos de nossos avós ou bisavós, talvez, e eventualmente de estórias que eles contavam sobre sua vida, seus parentes, ou eventos que presenciaram quando crianças...conheceremos e contaremos as histórias semelhantes para nossos netos e, com sorte (ou azar...) para nossos bisnetos...não muito mais do que isso. Parafraseando Gould (de novo), somos um primata muito particular que é capaz de rastrear sua própria história, pela escrita e pela arqueologia de forma coletiva, pensando em “humanidade”, e hoje, cientificamente, temos instrumentos que nos permitem medir a passagem do tempo com muito mais eficiência. Mas isso é muito pouco intuitivo e, de fato, o tempo profundo está muito além da nossa compreensão e da nossa experiência. Não é à toa que só no século XVIII, o geólogo e naturalista escocês James Hutton (1726 – 1797), em seu “Theory of the Earth”, chegou à ideia da enorme dimensão do tempo (epitomizada por sua frase famosa, que diz que em relação à história da Terra, “...não há vestígios de um começo, nem perspectivas de um fim”, contrariando assim o pensamento expresso no Gênesis bíblico plenamente aceito à época).
Carl Sagan (sempre ele!) mostrou ainda no primeiro episódio de sua série “Cosmos” de 1980 uma maneira muito interessante de pensarmos nesse problema, com a idéia do “calendário cósmico”. Se compactarmos o tempo conhecido desde o “big ban”, o início do universo conhecido, em um ano, como distribuir os eventos que conhecemos ao longo do ano que se desenrola. Por exemplo, nesse calendário, a explosão Cambriana, de mais ou menos 530 milhões de anos atrás, que mencionei acima, teria acontecido no início de dezembro...A extinção dos dinossauros quando o meteoro se chocou com a Terra no golfo do México teria acontecido no meio de 30 de dezembro, e o início do gênero Homo e toda a nossa história teriam acontecido nos últimos 20-30 segundos de 31 de dezembro. Não estamos medindo, claro, a passagem do tempo, estamos apenas tentando facilitar compreensão do “tempo profundo” a partir da distribuição de eventos importantes em uma escala de percepção mais próxima da nossa experiência, de um ano. Assistam, mais abaixo, ao video com a descrição de Sagan sobre o calendário (há uma versão também na versão mais recente de "Cosmos", de Neil Tyson)
O fato é que é difícil medir o tempo em termos de “acontecimentos”, que é o que realmente importa em biologia evolutiva. Podemos pensar em taxas evolutivas, claro, mas ainda assim elas não expressam eventos, são apenas outra forma de “relativizar” o tempo (assim como no calendário cósmico). Em genética evolutiva, faz muito mais sentido medirmos tempo em “número de gerações”, especialmente quando comparamos organismos com expectativas de vida muito diferentes (como uma mosca e um elefante), mas ainda assim para espécies de reprodução mais continuada, não “anual”, e ai aparecem muitas maneiras de definir o tempo de geração (e isso vai interagir, em termos de dinâmica evolutiva, com outros parâmetros demográficos e de estória-de-vida, o que nos leva de volta à questão das possibilidades de eventos). Nem precisamos ir além e acoplar escalas de espaço e tempo e discutir distâncias estelares em “anos-luz” e não em quilômetros, considerando os limites impostos pela teoria da relatividade de Einstein (muita coisa totalmente contra-intuitiva vai aparecer aí, claro, mas um ponto importante é que tempo não pode ser medido de forma tão simples quanto intuímos e independente do espaço e da velocidade, e os nossos sistemas modernos de GPS estão “calibrados” inclusive para levar isso em consideração...e isso nos remete também à discussão famosa entre Einstein e o filósofo francês Henry Bergson exatamente sobre a questão do significado e da medida do tempo, em 1922!!!).
Indo um pouco além, e tentando esclarecer a questão da “não-ciência” como forma de percepção e compreensão do mundo, será que pensamos no tempo de forma sempre “científica”, ainda que considerando todos os pontos levantados acima? Não há outra maneira de perceber a sua passagem ou "fluxo", em nossa experiência? Claro, não estou mais falando do tempo profundo e de questões científicas relativas a ele, mas de percepção mesmo, da nossa experiência do senso comum. Um dos pontos mais importantes desde o início da filosofia é justamente compreender a natureza do tempo e como lidamos com isso...Logo no início o excelente “O Tempo e a Vida” , um diálogo entre Marcelo Gleiser e Mario Sergio Cortella, inclui, entre muitas ideias, justamente uma discussão sobre a percepção do tempo, começando no início da filosofia grega (contrastando a visão dos pré-socráticos com a de Platão e Aristóteles) e indo até o debate entre Bergson e Einstein sobre a objetividade e contra-intuição ao medir tempo! Aliás, nesse livro eles mencionam que muitas das discussões “modernas” sobre o tempo começam com Santo Agostinho, e eles colocam que
“...No gênesis, esse cosmo é criado por Deus, dando origem ao tempo. O cosmo medieval é uma junção curiosa do Gênesis com Aristóteles: o Deus criador interfere no universo eterno, o que leva a uma pergunta que irritava profundamente Santo Agostinho: “Se Deus criou o mundo, o que estava fazendo antes?” A resposta que ele próprio (Agostinho) deu é clássica: “Antes de criar o cosmo, Deus criou o inferno para botar essas pessoas que fazem esse tipo de pergunta”.
Na verdade, dando mais um passo e saindo da esfera científica e mesmo filosófica, vamos finalmente com a questão psicológica do tempo "interior" e do significado da sua passagem, cuja discussão está nos primórdios da própria filosofia (e Mário Sergio Cortela comenta isso no livro, falando do tempo como “duração” e como “ocasião”, o que de certo modo se liga bem ao que mencionei acima sobre a nossa percepção “científica” do tempo geológico na evolução). Temos, por exemplo, uma percepção de decaimento exponencial do tempo...lembramos de coisas recentes e, de forma simplista, quando estudamos História na escola e falamos em antiguidade, em geral esquecemos que a época de construção das pirâmides do Egito está mais distantes do nascimento de Cristo do que de nós, ao longo do tempo linear...Na nossa cabeça colocamos tudo isso como “história antiga”...Por outro lado, temos bem mais clareza da distância temporal em eventos recentes, conseguimos diferenciar melhor a magnitude da diferença tempo entre o golpe militar de 1964, a redemocratização começando nas “diretas já” e a derrota de Bolsonaro em 2022. Isso para mim, mas esses eventos não vão fazer muito sentido em termos de cronologia explícita pra minhas filhas e filhos. Estamos também falando de questões triviais, como lembrar melhor à noite do que comemos no café da manhã hoje, ou do que ouvimos no rádio ou lemos nas mídias sociais enquanto íamos para a Universidade, mas não tão bem do que aconteceu no último evento científico do qual participamos antes da pandemia da COVID-19 (aliás, muita gente com quem converso relata alterações profundas de percepção do tempo depois da pandemia...). Estamos falando de como lembramos de eventos marcantes na nossa infância e qual é o seu significado e como eles moldaram o que somos hoje.
É algo tão simples, e está além da lógica e da visão tradicional de racionalidade...Como disse Spock, "...Esse simples sentimento, Jim, está além da compreensão de V'Ger" (oops...). Não é conhecimento científico, mas faz parte da nossa experiencia e da nossa percepção do mundo e, portanto, pode guiar a nossa perspectiva sobre muitos problemas que, às vezes, podem estar no nosso dia a dia como cientistas, tanto em termos “epistemológicos”, digamos assim, quanto em termos de conduta e atitude (como discutimos na postagem anterior). Será que não devíamos contar a passagem do (nosso) tempo pelas nossas experiências, pelas visões do pôr do sol, pelos embates, pelo número de xícaras de café nas madrugadas? Pelas nossas atitudes, pelas conversas com nossos amigos? Acho que vocês entenderam o que quero dizer, e não estou (mesmo) falando de ciência, tanto de forma individual quanto coletiva...Deixo vocês com a letra de “Seasons of Love”, do Musical “Rent”, de Jonathan D. Larson exibido com sucesso na Broadway entre 1996 e 2008, e que foi minha inspiração inicial para essa postagem (e vejam o filme “Tic Tic... Boom!”, que concorreu ao Oscar há alguns anos em que Andrew Garfield faz o papel de Larson de forma maravilhosa!).
Five hundred, twenty five thousand, six hundred minutes
Five hundred, twenty five thousand moments so dear
Five hundred, twenty five thousand, six hundred minutes
How do you measure, measure a year?
In daylights, in sunsets
In midnights, in cups of coffee
In inches, in miles
In laughter, in strife
Five hundred, twenty five thousand, six hundred minutes
How do you measure a year in a life?
How about love?
…
Five hundred, twenty five thousand, six hundred minutes
Five hundred, twenty five thousand journeys to plan
Five hundred, twenty five thousand, six hundred minutes
How can you measure the life of a woman or a man?
In truths that she learned
Or in times that he cried
In bridges he burned
Or the way that she died
It's time now to sing out
Though the story never ends
To celebrate, remember a year in the life of a friend
Remember the love
…
Measuring the seasons of love
Seasons of love
Pois é, parafraseando (mais uma vez), Carl Sagan, “...deviam ter enviado um poeta...”
Commentaires