Estamos falando já há algum tempo aqui no blog sobre pesquisa (especialmente na Universidade) e definimos também em outra postagem anterior a questão mais ampla da ciência como forma de conhecimento humano e de entender o mundo. Entretanto, na prática, no início do século XXI a ideia de pesquisa está muito ligada à questão tecnológica, inclusive na percepção da maior parte das pessoas. Na verdade, os próprios programas de divulgação e popularização da ciência insistem muito nesse aspecto, tentando valorizar a importância da pesquisa científica no dia-a-dia das pessoas, o que é particularmente visível em tempos de crise financeira ou política, como a que estamos vendo atualmente no Brasil...
Do modo conceitual, como já discutimos, a ciência não possui normalmente uma “finalidade” em termos de aplicação prática, ou seja, necessariamente os resultados de um projeto de pesquisa não vão gerar produtos que tenham alguma importância direta na vida das pessoas. Estamos avançando no conhecimento simplesmente pela nossa vontade de saber mais sobre um determinado assunto, de entender o mundo natural ou qualquer aspecto da nossa sociedade e da dimensão humana. Em geral chamamos isso de “pesquisa básica” e, nesses casos, uma das questões óbvias é por que fazemos isso? Por que gastamos nossos recursos financeiros com pesquisa básica? Há duas razões que consigo imaginar, em um primeiro momento. A primeira delas é mais “filosófica” e estaria ligada à própria natureza humana, no sentido de sermos curiosos e queremos entender o mundo, e se quisermos avançar um pouco mais poderíamos pensar nos ideais iluministas e dizer que as pessoas se tornam melhores como seres humanos e como cidadãos se elas são mais educadas, se elas possuem mais conhecimento. Além disso, podemos argumentar que se a maior parte da população é cientificamente esclarecida e entende como o mundo à sua volta funciona, ela seria menos susceptível à “fake news”, negacionismo, pseudociência etc...Nesse contexto, a ciência estaria muito ligada à questão da educação de forma ampla e seria, de fato, a base da construção de uma sociedade democrática.
Mas se você não está muito convencido por esses argumentos mais “filosóficos”, podemos pensar em uma segunda razão, que pode lhe parecer mais interessante: como podemos garantir que algo que foi descoberto hoje, mesmo que pareça “inútil” em princípio, não será aplicado no futuro? Há a famosa estória (que possui várias versões...) do Primeiro-Ministro inglês visitando o laboratório do químico Michael Faraday no século XIX e perguntando “Para que serve isso?” (referindo-se às descobertas sobre eletro-magnetismo), ao qual o grande cientista teria respondido: “Para que serve um bebê?”. Isso ilustra bem essa segunda possibilidade, mas claro que de antemão é difícil dizer quanto do conhecimento básico venha a se tornar aplicado em algum momento. Na minha opinião, o “argumento do bebê”, como poderíamos chamar, é usado de forma abusiva pelos pesquisadores para justificar seus trabalhos e tentar garantir que suas pesquisas continuem sendo financiadas, especialmente em momentos de crise financeira. Eu particularmente gosto mais do primeiro argumento, apesar de entender que muitas pessoas (entre elas os políticos ou tomadores de decisão responsáveis pela priorização na distribuição de recursos) possam não gostar. É a vida...
Existe um outro “nível” de pesquisa que poderíamos chamar de “aplicado”, quando o foco da investigação já é na resolução de um problema que temos no mundo real ou em nossa sociedade, em termos de medicina, engenharia, agronomia, comunicações etc. Podemos imaginar, por exemplo, que queremos avaliar a distribuição espacial dos parâmetros demográficos de populações do mosquito da dengue (Aedes aegypti) em Goiânia, para subsidiar políticas públicas em termos de esforços de combater a proliferação das larvas ou otimizar a alocação de postos de saúde ou atendimento. Mas claro que podemos existir diferentes “níveis” de aplicação, em termos de resultados aplicáveis direta ou indiretamente, ou em curto ou longo prazo. Seguindo o raciocínio, se alguém quer fazer sistemática e estudar as relações evolutivas do gênero Aedes com outras espécies de mosquito (um assunto tipicamente de pesquisa básica em zoologia ou ecologia), é tentador, ao escrever um projeto de pesquisa, dizer que essa pesquisa pode ser importante porque trata do gênero do mosquito transmissor da dengue e de outras doenças. Em geral esse tipo de argumento é usado para justificar a pesquisa, mas não há muita evidência a priori de que, de fato, haja algum potencial de aplicação só por se tratar de um grupo de uma espécie que é relevante no contexto de saúde humana. Mas é claro que pode ser que algum padrão emergente apareça e que possa ser útil (por exemplo, pode ser possível por essas análises fazer predições sobre o comportamento ou ecologia de espécies evolutivamente próximas a A.aegypti que, futuramente poderiam se tornar também transmissores da dengue ou de outras viroses semelhantes? É um exemplo totalmente hipotético...).
Podemos pensar ainda em um nível mais “efetivo” de pesquisa aplicada, na qual esse conhecimento pode, ao resolver um problema do mundo real e do dia-a-dia, gerar algo tecnologicamente inovador que passa a ter valor comercial ou industrial. Um produto de pesquisa pode vir a se tornar um processo industrial ou permitir a criação de uma empresa que vai comercializar esse produto, ou ser adquirido por uma empresa que queira viabilizar sua produção em grande escala (e nesses casos a participação da iniciativa privada e de empresas é fundamental, claro!). Temos hoje um grande número de empresas de base tecnológica e, na realidade, em muitos casos essas empresas são “incubadas” nas Universidades. A maior parte das Universidades possui programas de “Empresas Jr”, ou empresas de estudantes que começam timidamente a funcionar dentro da instituição, utilizando sua infraestrutura básica, sob a supervisão de docentes e pesquisadores (vejam que isso reforça fortemente a ideia do “tripé” ensino-pesquisa-extensão, do qual falamos tanto!). Em muitos casos essas empresas depois se tornam empresas “profissionais” e passam a ter um papel de destaque no mercado e na sociedade.
Essa possibilidade de pesquisa com fins tecnológicos e ligada a produtos inovadores em termos comerciais ou industriais é interessante e importante, certamente, mas temos que estar cientes de que ela gera uma certa “inversão” em termos do propósito mais amplo da pesquisa como forma de adquirir conhecimento. Digo isso porque o produto gerado pela pesquisa não é público e seu uso passa a ser restrito ao grupo de pesquisadores ou instituição que o descobriu. Nesses casos, de fato, até a forma de produção científica é diferente, pois em geral o pesquisador não vai “publicar” o trabalho com a sua descoberta (ou seja, não vai torná-lo público); muito pelo contrário, ele ou ela, ou sua instituição, vai querer “proteger” esse conhecimento e patenteá-lo, de modo que outros pessoas que queiram se beneficiar dessa descoberta terão que pagar por esse uso. Sem dúvida, isso ocorre no mundo real hoje, mas isso filosoficamente inverte a lógica “comunista” dos valores Mertonianos, que discutimos anteriormente.
Na realidade, dependendo do contexto, poderíamos pensar em um amplo “gradiente”, ou sequência, de como o conhecimento cientifico pode ir da pesquisa básica até a pesquisa aplicada ou tecnológica. Por exemplo, suponha que uma pesquisa básica em botânica, ao fazer um levantamento de espécies de plantas em uma região, revele a existência de uma espécie cuja família tende a possuir, em outras partes do mundo, outras espécies de interesse medicinal. Uma análise genética e química realizada pelos docentes de um outro Departamento revela, em seguida, que há de fato propriedades químicas interessantes nesse sentido, mas em quantidades pequenas ou pouco refinadas. Pesquisadores da área de agronomia poderiam então dar início a um programa de “domesticação” ou até melhoramento genético focado em aumentar a produção individual de uma determinada propriedade medicinal e gerar (e logo patentear) uma variedade daquela espécie. Uma indústria farmacêutica poderia estar envolvida no processo e passar a produzir essa variedade em escala industrial ou refinar o processo de produção de um medicamento comercial a partir daí. Nesse exemplo, há uma continuidade da pesquisa básica até a pesquisa tecnológica, e seria interessante pensar em quando isso deixa de ser básico e se torna aplicado ou tecnológico (e como consequência até onde isso seria “publicável” ou “patenteável”).
Existe mais um ponto interessante (e polêmico) dessa questão tecnológica. Aproveitando o exemplo da planta medicinal hipotética, vamos imaginar que essa planta não foi descoberta por um biólogo em um levantamento botânico, mas na verdade chamou atenção de um antropólogo que estava fazendo um trabalho etnográfico em uma comunidade indígena ou tradicional da região. Esse pesquisador poderia relatar no seu estudo antropológico que aquela comunidade, há muitas gerações, utiliza várias plantas na forma de chás ou infusões para curar certas doenças, e essa lista chama atenção dos pesquisadores na química ou na genética, ou eventualmente da própria indústria farmacêutica, que descobrem aquela espécie potencialmente importante. Se esse processo terminar realmente na produção de um medicamento de grande impacto comercial, rendendo à empresa farmacêutica milhões de dólares, será que a comunidade indígena ou tradicional não deveria receber uma (boa) parte desses lucros? E o antropólogo? Isso nos leva a toda uma discussão complexa e bastante atual sobre o que se chama de “partição de benefícios”, que hoje felizmente começa a ser regulamentada no Brasil, apesar de muitas dificuldades e de muitos interesses comerciais conflitantes.
Então, quando pensamos em ciência básica pensamos em pelo menos dois argumentos para justificá-la, ou seja, uma visão filosófica e de certo modo “romântica” ligada à educação e ao conhecimento "per se", e o que chamei de “argumento do bebê” (ou seja, algo de pesquisa básica hoje pode vir a ser aplicado no futuro). Em termos de ciência já mais aplicada e de desenvolvimentos tecnológicos, a justificativa e importância da pesquisa é óbvia, pois passa pelo dia-a-dia das pessoas, pelos avanços imediatos em termos de saúde, produção de alimentos, novos materiais e diversas outras questões tecnológicas. Como coloquei anteriormente, essa é a visão de como a ciência afetou a humanidade nos últimos 250-300 anos. A própria curva de crescimento populacional humana e do consumo de energia é o melhor indicador do sucesso da ciência e da revolução industrial diretamente associada aos progressos na ciência a partir dos séculos XVII – XVIII (apesar dos numerosos “efeitos colaterais” que estamos vendo agora, principalmente em termos de problemas ambientais globais e dos “limites planetários”, que vamos discutir com calma em outro momento).
Mas será que os dois argumentos para continuar a pesquisa em termos básicos e aplicados estão realmente separados? Mesmo que o avanço da ciência aplicada esteja associado à questão do capitalismo e da proteção intelectual, sob o “argumento do bebê” não seriam os benefícios da ciência aplicada automaticamente associados, em última instância, ao bem-estar da Humanidade? Infelizmente, nem sempre... Mas isso é interessante porque nos leva à questão inversa. Falamos continuamente sobre como a ciência afeta a humanidade, mas podemos perguntar também como a sociedade afeta a ciência?
Em primeiro lugar, temos a questão da definição da “agenda científica”, ou seja, quais são as questões científicas, ou áreas do conhecimento, mais importantes ou prioritárias em termos de financiamento e apoio? Em alguns casos a agenda é, pelo menos em parte, um consenso da comunidade científica (veja por exemplo a “Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação 2016-2022" do MCTIC), mas especialmente no caso da ciência aplicada essa agenda pode ser muita mediada por interesses políticos ou econômicos. Isso tende a ser inevitável e passa, na maior parte dos casos, pelo embate para desvalorizar ciência básica para subsidiar apenas ou em grande parte ciência aplicada. Mas há outros aspectos interessantes em relação à agenda: por exemplo, será que se houvesse uma maior proporção de mulheres na ciência, a agenda de pesquisa seria a mesma? E se outros países com diferentes bases culturais liderassem a atividade científica mundial, isso afetariam a agenda de pesquisa? Não quero discutir aqui novamente a questão do relativismo científico e a separação entre o “contexto da descoberta” e o “contexto da justificativa” (ou seja, a ideia mais complexa de que a própria ciência depende da estrutura social), mas de fato não há como negar que a agenda de pesquisa em si depende desse contexto social.
Quero muito pensar que, na ciência básica, a agenda é definida pelo próprio avanço do conhecimento, como uma soma dos interesses dos pesquisadores individuais e motivada pela curiosidade científica (embora isso não signifique que esse avanço seja totalmente “neutro”, em termos políticos ou ideológicos, por definição). Mais do que isso, seguindo um ideal iluminista do início da revolução científica, essa agenda visaria “o bem da humanidade” como um todo. Talvez isso nos permita então pensar em mais um argumento para valorizar e defender a ciência básica e, mais importante, cria uma forte ligação entre ciência básica e aplicada. Isso pode ser uma visão utópica ou ingênua, mas acho interessante mantê-la em mente, mesmo que saibamos que cada cientista define sua própria agenda também com base em outros interesses, incluindo a própria “moda” de uma determinada linha ou área de pesquisa e sua chance de sucesso profissional ao perseguir certas questões (dentro do contexto Mertoniano, o reconhecimento que pode ser criado ao perseguir certas agendas é bastante importante). Mas quero crer que nas áreas mais básicas essa independência é mais plausível do que em áreas aplicadas e, certamente, é um argumento extremamente importante para defender inclusive a manutenção da pesquisa nas áreas básicas e nas humanidades (contra diversas manifestações recentes do Governo Federal e do próprio MEC).
Em uma situação limite, não é possível ignorar o potencial de “corrupção” individual (ou mesmo coletiva) dos cientistas diante do financiamento e atendendo à interesses políticos ou econômicos, no caso de ciência aplicada. Na realidade há muita discussão sobre isso inclusive com casos bem conhecidos, como os ligados entre a relação entre incidência de câncer e fumo, ainda nos anos 70, e mais recentemente em termos do “debate” sobre as mudanças climáticas globais, como discutido no excelente “Pos-Truth” de Lee McIntye, de 2018 (o mesmo autor do “The Scientific Attitude” que mencionei bastante em uma postagem anterior sob negacionismo e pseudo-ciência). Nos dois casos, cientistas são contratados e seus grupos de pesquisa financiados para mostrar, por meio de suas pesquisas, efeitos negativos ou contraditórios em algumas questões científicas, como essas mencionadas acima. Desnecessário dizer que esses efeitos inexistem e que essas pretensas discussões podem ser melhor entendidas no contexto do negacionismo científico, o que abre uma questão importante sobre a “qualidade” dessas pesquisas e sobre o compromisso ético e moral dos cientistas envolvidos. Nesse contexto, um outro caso ainda mais interessante (e extremo...) é sobre a atuação dos cientistas na Alemanha Nazista, descrito em detalhes por John Cornwell em seu excelente “Os Cientistas de Hitler”, de 2003 (Editora Imago; capa abaixo). É importante notar que no caso do nazismo o problema de “corrupção” dos ideais e valores da ciência no sentido que discutimos acima envolveu também áreas da própria ciências humanas, como sociologia e antropologia, o que me parece muito mais grave (pois a ciência “aplicada” e tecnológica estava colocada em um contexto de tecnologia militar, que obviamente não era exclusiva dos Nazistas, mas existia – e existe – em todos os países e Estados).
Honestamente, é muito difícil, e de certo modo até embaraçoso, discutir essas questões sobre as distorções na condução da ciência e os efeitos disruptivos da inovação tecnológica, pois de fato elas ferem os princípios básicos da própria ciência e da atitude científica, como já discutimos anteriormente. Mas não podemos ser ingênuos e negar que a ciência, em última instância, é o reflexo da sociedade que a produz. Os valores idealizados e a visão romântica da ciência podem muito rapidamente ser corrompidos pelos interesses econômicos e políticos. Assim, não podemos negar que o problema existe e que é preciso ficar atento a ele, especialmente em momentos de crise no qual os cientistas e as instituições se tornam, às vezes, mais susceptíveis a certas mudanças de agenda em troca de manutenção de suas atividades.
Capa: o "argumento do bebê" e a ciência básica...
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