Discutimos na postagem anterior que a pós-graduação está dividida em dois tipos (lato e stricto sensu) e que a especialização tem por objetivo o aperfeiçoamento profissional em áreas específicas, seguindo em geral o mesmo modelo do ensino de graduação, mas "detalhando" um determinado assunto. Por outro lado, os mestrados e doutorados fazem parte do ensino regular e possuem um modelo diferente em termos de formação acadêmica, com forte interação com “pesquisa”. Mas o que um estudante realmente faz durante o mestrado e o doutorado? Qual a diferença do que acontece na graduação ou na especialização?
Quando um estudante que termina a graduação está interessado em uma área acadêmica ou científica, ele ou ela deve procurar um programa de pós-graduação que seja do seu interesse, ou seja, cujos docentes desenvolvem atividades de pesquisa na sua área de interesse. Ele ou ela deve então se submeter a um processo seletivo, que em muitas vezes é bastante concorrido, uma vez que o número de vagas não é tão elevado quanto na graduação. Além disso, em geral não é suficiente só ser aprovado, é preciso ficar bem classificado se ele ou ela quer ter chance de concorrer a uma bolsa de estudos e poder se dedicar integralmente ao curso. Esse é um assunto importante ligado ao funcionamento dos programas de pós-graduação que vamos abordar posteriormente.
Uma vez que um estudante ingressa no programa de pós-graduação (no mestrado, inicialmente), é preciso escolher um orientador, ou seja, alguém que vai supervisionar e ser responsável por ele ou ela pelos anos seguintes, e rapidamente começar a pensar em um projeto de pesquisa. Em muitos casos - talvez na maioria - essa escolha do orientador é feita antecipadamente, e em muitas vezes uma avaliação do projeto inicial a ser desenvolvido pelo estudante faz parte da própria seleção para ingresso no programa. O estudante deve também cursar algumas disciplinas ou cursos logo nos primeiros semestres (a carga horária mínima em disciplinas varia muito entre as Universidades e entre os programas - na UFG o mínimo são 256 horas para o mestrado e 384 horas para o Doutorado). Essas disciplinas podem ter o objetivo tanto de dar uma formação teórica sólida na área do programa quanto de ajudar o estudante a desenvolver suas atividades de pesquisa (disciplinas mais "instrumentais” ou “práticas”, por exemplo).
O projeto de pesquisa é o centro dos programas de mestrado e doutorado e deve então ser desenvolvido com o apoio do orientador. Os resultados do projeto devem ser escritos e apresentados na forma de uma Dissertação de Mestrado. É comum (e acho que realmente necessário) que, durante o desenvolvimento do projeto, haja um acompanhamento mais “formal” das atividades de pesquisa do aluno, por parte da coordenação do programa ou de comitês “ad hoc” de docentes do programa ou de outras IES (esse acompanhamento é mais crítico no Doutorado, dado o tempo mais longo das atividades de pesquisa). Claro que o orientador é responsável pelo andamento do projeto, mas a experiência mostra que é preciso ampliar esse acompanhamento de deixá-lo mais institucional. Quando o projeto é finalizado, idealmente após 2 anos, a dissertação resultante será então avaliada por uma banca examinadora, em geral formada por 3 pesquisadores, incluído o orientador. Nessa banca pelo menos um deles deve ser “independente”, ou seja, não deve ser professor do mesmo programa ou da mesma Universidade. Aprovada a dissertação, o aluno recebe o título de Mestre.
O Doutorado repete basicamente o mesmo processo descrito acima para o mestrado e, na maioria dos casos, o estudante que terminou o mestrado deve se submeter a um novo processo seletivo. Ele pode continuar no mesmo programa e com o mesmo orientador ou não, e pode continuar ou não com o seu tema de pesquisa anterior. Sempre pensamos que o ideal é que haja mais “mobilidade”, ou seja, que o estudante possa mudar de Universidade e de orientador, diversificando suas experiências e conhecendo pessoas e áreas diferentes. Mas isso depende de diversos fatores e, na minha opinião, o que importa realmente é que o estudante esteja consciente de suas escolhas e que esteja trabalhando em sua área e interesse, que continue motivado. Isso é importante especialmente quando ele ou ela conclui o mestrado, já que a ideia é que no Doutorado sejam desenvolvidos projetos mais audaciosos e complexos, por um tempo bem maior (em geral até 4 anos). Os resultados desse projeto vão constituir sua Tese de Doutorado (só um detalhe aqui; nos países de língua inglesa os nomes dos produtos finais do mestrado e doutorado possuem nomes “trocados” em relação aos que usamos – fala-se de Master thesis e de Doctoral Dissertation, ou PhD Dissertation). Existe alguma variação entre as áreas do conhecimento sobre o que se constitui de fato em uma tese de Doutorado, mas em geral a ideia é que seja um trabalho de pesquisa inédito e que avance no conhecimento daquela área. Já o mestrado pode ser algo mais simples, ou pode mesmo ser apenas uma revisão crítica da literatura que existe sobre um assunto (mas hoje isso é raro).
Por ser mais longo e ser a última etapa do ensino regular, o doutorado possui na verdade mais “etapas”. Em geral antes de finalizar o doutorado e submeter sua tese à avaliação pela banca examinadora, o estudante deve passar por um “exame de qualificação”, que tem por objetivo avaliar o desenvolvimento do projeto e principalmente a “maturidade intelectual” do candidato a Doutor. Existe muita variação entre os formatos desse exame geral de qualificação entre os programas, mesmo dentro de uma mesma Universidade. Esse exame pode ser uma análise bem inicial do projeto (digamos, logo no início do segundo ano de doutorado), uma avaliação intermediária com foco na maturidade intelectual do estudante ou algo que ocorre já bem próximo do final do curso, se caracterizando como um “pré-defesa”, ou “pré-banca”. Em geral o estudante é examinado por alguns docentes do programa, após uma exposição e entrega de um trabalho escrito. Em alguns casos os mestrados também exigem esse exame de qualificação antes da entrega da dissertação. Novamente, nos países de língua inglesa, notadamente nos Estados Unidos, esse exame de qualificação é considerado muito importante e possui o foco na maturidade do estudante, no sentido dele ou dela se tornar realmente um “cientista” naquela área, com uma visão mais ampla (de fato isso está ligado ao fato do título de Doutor nos EUA e na Inglaterra ser denominado PhD, de Philosophy Doctor – Doutor em Filosofia; mas claro que essa visão nem sempre é tão ampla assim...a especialização cada vez maior em áreas específicas e a perda de uma visão mais global de ciência é um problema no mundo todo! Discutimos isso depois, mas veja rapidamente aqui um comentário publicado na Nature sobre essa questão em 2018...). Na verdade, para ilustrar a importância da qualificação nesses outros países, antes da qualificação o estudante é um PhD “student”, e depois de aprovado na qualificação ele ou ela é denominado(a) PhD “candidate”. Ou seja, antes da qualificação ele ou ela é “apenas um estudante” naquele nível, mas depois da qualificação ele passa realmente a ser um candidato ao título. Mas note-se que, por outro lado, nesses países o mestrado tem pouca ou nenhuma importância na maior parte das áreas; é comum que o estudante saia da graduação sem nenhuma formação em pesquisa e vá diretamente para o Doutorado, que assim termina sendo bem mais longo e com essa “diferenciação” de antes e depois do exame de qualificação. No final do processo, a banca de Doutorado é também formada por pesquisadores do curso e de outras Universidades, mas em geral composta por 5 pesquisadores.
Mas há alguns pontos importantes que quero discutir em relação a esses “produtos finais” dos mestrados e doutorados, as dissertações e teses, e sua avaliação por essas “bancas”. Vamos lá... Em primeiro lugar, o que são realmente essas dissertações e teses que são avaliadas por uma banca examinadora? Elas são o relato do trabalho de pesquisa do estudante de mestrado e de doutorado, detalhando tudo que ocorreu durante o projeto, ou seja: qual foi o problema científico a ser explorado ou resolvido, incluindo uma revisão dos trabalhos que já haviam sido feitos sobre o tema (a “literatura” científica naquele tema ou naquela área)? Qual foi a nova abordagem a ser utilizada e qual a novidade em relação ao que havia sido feito antes? Que dados foram coletados e como eles foram analisados? Mais importante, a que conclusão se chegou e como o conhecimento avançou com o trabalho?
Certamente a estrutura e o formato desse trabalho final variam muito entre as diferentes áreas do conhecimento. Em algumas áreas, principalmente nas ciências sociais e humanas, essas dissertações e teses possuem um formato que poderíamos chamar de “monográfico”, como um livro (e de fato muitas dessas dissertações e teses são publicadas posteriormente na forma de livros). Em outras áreas, especialmente nas ciências naturais, as dissertações e teses passaram a ser, de alguns anos para cá, compilações de vários “artigos científicos” mais curtos originados dos projetos dos estudantes (e esse é o padrão em todo o mundo). Esses artigos, que são uma síntese de alguns pontos específicos do projeto e que são publicados em revistas especializadas, podem inclusive já ter sido publicados ou terem sido submetidos para publicação nessas revistas. Na verdade, em muitos casos o próprio programa de pós-graduação exige que esses artigos tenham sido publicados para que o aluno possa finalizar o seu curso e defender sua tese (uma prática bem questionável na minha opinião...). De modo geral, a ideia de que as teses já sejam compilações de artigos está também ligada à própria avaliação da produção científica pelas agências de fomento e principalmente pelas avaliações da CAPES, que tem dado cada vez mais importância à produção científica dos estudantes para que o programa seja bem avaliado (esse é um aspecto bastante importante que merece uma discussão detalhada depois, em termos da ideia de produção científica na pesquisa e como isso faz parte da avaliação dos programas de pós-graduação, bem como o funcionamento da CAPES em geral). De qualquer modo, podemos dizer que essa maneira de relatar os resultados da pesquisa aproxima mais o estudante do que realmente é a prática científica no início do século XXI. Esses artigos são liderados pelos estudante, mas podem envolver equipes de trabalho e outros pesquisadores como coautores, o que implica também que esse estudante deve desenvolver outras habilidades durante a sua pós-graduação, como liderança e capacidade de resolver conflitos, dentre outras.
Como já coloquei anteriormente, as dissertações e teses são apresentadas a uma banca examinadora composta de docentes e pesquisadores, que vão avaliar o trabalho. Isso ocorre em uma seção formal de “defesa” de dissertação ou de tese. No Brasil essas defesas são públicas, ou seja, é uma seção aberta que, no geral, consiste em uma apresentação do estudante, durante 30 ou 40 minutos, seguida de uma arguição por parte da banca examinadora (em alguns países apenas a apresentação é pública e a fase seguinte, da arguição, fechada). Portanto, essa seção de defesa pode durar várias horas... Cada um dos membros da banca vai questionar e discutir com o estudante o trabalho e assim fazer uma avaliação se o estudante “faz jus” ao título de mestre e doutor. Essa avaliação é bastante individual e diferentes docentes e pesquisadores agem de forma diferente nas bancas. Mas acho que é comum uma atitude “mista”, ou seja, em parte a postura é de avaliador, mas pela própria natureza da ciência é bastante comum (talvez até mais comum...) que o avaliador na realidade ajude o estudante a melhorar seu trabalho, dando sugestões de novas análises ou de novas interpretações, chamando atenção para problemas e fazendo até correções de texto em termos de linguagem e estilo de redação. Hoje é comum que essa participação possa ocorrer inclusive por sistema de vídeo ou web-conferência, especialmente considerando os custos de viagem envolvidos em trazer pessoas de outras universidades e de outras cidades em um país tão grande quanto o Brasil (e claro que temos uma crise econômica e os recursos para a pós-graduação e pesquisa estão sendo drasticamente reduzidos...).
Acho que é interessante chamar atenção que, na prática, embora as defesas de dissertação e tese tenham um caráter formal e avaliativo, em geral não há reprovação nessa fase (eu particularmente nunca participei de uma banca na qual um estudante de mestrado ou doutorado tenha sido reprovado...). Algumas pessoas questionam isso, sem compreender realmente todo o processo, e passam a impressão que é “fácil” obter um titulo de mestre ou doutor. Mas não vamos nos enganar e achar que isso é realmente um problema...O que acontece é que, durante os anos anteriores à defesa, há várias etapas de avaliação que podem fazer com que o estudante possa ser desligado do programa. Assim, quando ele ou ela termina sua dissertação ou sua tese isso significa que o projeto foi desenvolvido adequadamente e que o estudante está, de fato, preparado(a). Em primeiro lugar, há o processo de seleção para ingresso, que não é fácil e apenas os estudantes mais preparados ou motivados em geral ingressam no programa. A partir desse momento há todo o processo de acompanhamento do trabalho de pesquisa pela coordenação do curso e principalmente pelo orientador, que pode a qualquer momento pedir o desligamento se o estudante não estiver desenvolvendo bem o seu projeto (de forma justificada, claro...). Esse desligamento pelo orientador não é muito comum, mas por outro lado há vários casos em que há uma mudança de orientador, tanto por razões pessoais quanto profissionais, com uma consequente mudança no tema de pesquisa (vamos discutir mais a questão da orientação posteriormente...). O estudante deve ser aprovado nas disciplinas e, em geral, reprovação significa desligamento do programa. Depois ele ou ela precisa fazer o exame de qualificação, como já discutimos, e quando ocorre uma reprovação nessa etapa é possível, em geral, refazer esse exame mais uma vez. Só depois de tudo isso, e finalizado o projeto, é que o estudante pode solicitar a defesa. Em algumas universidades a banca é consultada formalmente, antes da defesa, se o trabalho apresentado está ou não em condições de ser defendido (e, nessa fase, se a banca emitir um parecer negativo, o estudante terá que refazer algumas coisas e solicitar novamente a defesa depois de resolver os problemas). Em outras universidades, após a defesa, a dissertação ou tese pode ainda ser “aprovada condicionalmente”, ou seja, o estudante ainda vai precisar fazer uma série de correções, e eventualmente até ter que agendar uma nova seção de defesa, antes de obter o título de mestre ou doutor. Na maior parte dos locais no Brasil, o estudante apenas é “aprovado” ou “reprovado” na seção de defesa, mas em geral mesmo com a aprovação ainda podem ser solicitadas correções ou ajustes rápidos antes que a “versão final” da dissertação ou tese seja depositada nas bibliotecas ou nos bancos digitais da CAPES, se tornando pública.
Há ainda dois pontos que gostaria de ressaltar em relação à formação durante o mestrado e o doutorado. Não podemos esquecer que há uma ligação muito forte entre pesquisa e ensino superior, como já sabemos. Desse modo, uma vez que essas carreiras estão associadas, é interessante que os estudantes de mestrado e doutorado tenham algum treinamento em termos de ensino superior. Na realidade a CAPES há muitos anos percebeu esse problema e estabeleceu, por exemplo, a necessidade de que os estudantes de pós-graduação façam o que se chama “estágio docência”. A ideia é que sejam desenvolvidas uma série de atividades de ensino, acompanhando a rotina dos docentes em sala de aula, ajudando no planejamento dos cursos, ministrando aulas, participando das avaliações, etc. Em geral exige-se 30 horas para alunos de Mestrado e 60 horas para alunos de Doutorado. Embora o tempo seja curto, de modo geral a experiencia me parece positiva para os estudantes que realmente se envolvem no processo.
Finalmente, o último ponto que acho interessante comentar aqui é que existem vários programas de intercâmbio pelos quais os estudantes podem melhorar sua formação durante o mestrado e, especialmente, durante o Doutorado. Discutiremos mais isso quando falarmos de “pesquisa” e de “internacionalização”, mas acho que todos já têm a ideia de que a ciência atual está cada vez mais colaborativa. De fato, há realmente muito incentivo para isso em termos de avaliação e de financiamento. No caso da Pós-Graduação, é muito comum que os estudantes fiquem um tempo, por exemplo, em um laboratório de um colega de outra instituição para desenvolver parte do seu trabalho (aprendendo uma nova técnica ou utilizando um equipamento que pode não estar disponível na sua instituição de origem). É comum também que os estudantes façam disciplinas em outras instituições, especialmente disciplinas “condensadas” ou “intensivas” de curta duração (uma ou duas semanas), e posteriormente aproveitem esses créditos em seus programas de origem. Há alguns programas financiados pela CAPES, por exemplo o programa PROCAD, que visa financiar esse tipo de intercâmbio e promover contato entre programas mais novos e mais consolidados (a fim de melhorar a qualidade dos programas mais novos). Há ainda vários programas internacionais e o mais importante deles é o Programa de Doutorado “Sanduíche” no Exterior (PDSE), pelo qual o estudante de Doutorado recebe um auxilio e uma bolsa internacional para ficar entre 6 meses e 1 ano em um grupo de pesquisa no exterior (mas vamos falar mais do PDSE quando discutirmos a questão muito atual da “internacionalização”). Esses estágios ou intercâmbios não são obrigatórios, mas não há dúvida que os estudantes podem melhorar muito sua formação participando deles.
Então, para obter o título de mestre ou doutor são exigidas todas as etapas acima. Mas o aspecto central do mestrado e do doutorado é o desenvolvimento do projeto e da apresentação final da dissertação ou tese. Nesse aspecto temos que analisar com mais calma algo que é muito importante para o sucesso do estudante, que é a relação entre o estudante e seu orientador...em uma próxima postagem!
Capa: Defesa de tese de minha ex-orientada Leila Meyer, no programa de Pós-Graduação em Ecologia & Evolução da UFG, em fevereiro de 2019. A tese defendida foi "Macroecologia e distribuição geográfica da tribo Bignonieae (Bignoniaceae)"