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Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

E se a culpa não for de Aristóteles?


I believe in design because I believe in God, not in God because I see design

(John Henry Newman, 1870)



Em uma postagem anterior sobre o Criacionismo e a “Teoria” do Design Inteligente (DI) mostrei que essa ideia, de fato, é bastante antiga e que David Hume já havia mostrado que ela seria baseada em um argumento indutivo inválido. William Paley tentou habilmente escapar dessa crítica ao reformular a ideia de DI na forma de uma “inferência à melhor explicação” (inference to the best explanation). Mais, discutimos que a ideia da pseudociência, nesse caso específico o chamado “criacionismo científico”, que tem como principal “teoria atual" o DI, está na atitude dos seus defensores e não no argumento por si, já que é possível formulá-lo de forma lógica e refutá-lo. Mas ainda há outros pontos interessantes a explorar e ligar com alguns outros temas, como ressaltado em alguns dos trabalhos recentes da filósofa belga Helen de Cruz. Em resumo, por que o argumento do DI é tão convincente e, de certo modo, intuitivo, para explicar a complexidade da natureza mesmo após o início do Darwinismo? Já discutimos a questão do materialismo subjacente, mas há algo ainda mais profundo aí...


Uma das ideias importantes inerentes ao DI, no sentido de pensar em “projeto” (design), é a ideia de teleologia. A palavra, que vem do grego teleo + logos, se refere ao estudo ou conhecimento do propósito, projeto ou finalidade. Por definição, a ideia de projeto é teleológica, pois pensamos em algo e temos isso em nossa mente ANTES daquilo se concretizar. Na realidade, a ideia de teleologia, por sua vez, é ligada diretamente à ideia de propósito e pode ser pensada, nesse contexto, como sendo uma das "causas" para a existência do objeto. O que nos leva, claro, às “causas Aristotélicas”... Aristóteles, pouco mais de 300 anos antes de Cristo, colocou em sua Metafísica que podemos entender a causa (ou origem, ou existência) de um objeto pensando em termos de 4 “causas”



- Causa material (a matéria que compõe o objeto);


- Causa formal (a forma dada a essa matéria, o modelo, por exemplo);


- Causa eficiente (ou seja, o processo que desencadeia os eventos que geram o objeto);


- Causa final (ou teleológica), que é o propósito daquele objeto.




Nunca deixo de me surpreender ao imaginar alguém, como Aristóteles e os demais filósofos da antiguidade, pensarem em tantas coisas há tanto tempo, em lugares diferentes e em um mundo tão distinto do que vemos hoje em termos de tecnologia e conhecimento geral (empírico) sobre a Terra e o Universo. Mas as ideias estavam lá, onde sempre estiveram, na mente de alguns curiosos pensadores! Fica claro que muitas ideias são atemporais e muitas vezes independentes do contexto social, político, histórico ou econômico. Enfim, nada com a mente humana...Interessante, vamos em frente.


Atualmente apenas a "causa eficiente" de Aristóteles faz sentido quando falamos em “causa”, quando tentamos estabelecer relações de causa-efeito no nosso dia-a-dia. Mas notem que a causa final implica exatamente no “propósito”. Os objetos e os seres existem “para alguma coisa”, porque foram criados com um propósito... Passamos, rapidamente, imaginar que “alguém” fez isso. Muitos atribuem, portanto, o apoio à ideia do DI à enorme influência, direta ou indireta, de Aristóteles no pensamento ocidental até hoje.


Entretanto, talvez haja algo mais profundo e Helen de Cruz levanta outras ideias bem interessantes. Na verdade, o que ela coloca é que talvez a mente humana tenha EVOLUÍDO para pensar de forma teleológica! A ideia de que a seleção natural moldou nosso pensamento dessa forma é apoiada pelo fato de que outras culturas possuem uma visão teleológica do mundo (mesmo quando não apoiadas em uma ideia de Criador ou Divindade pessoal). Vejam o exemplo básico de construção de uma ferramenta, que é algo bastante típico do gênero humano (outros animais, especialmente primatas, usam ou aproveitam os objetos como ferramentas, mas eles não modificam esse objeto intencionalmente para usos distintos, pelo menos não de forma óbvia). Para lascar uma pedra a fim de produzir o resultado desejado, um caçador coletor há mais de dois milhões de anos atrás na África tinha que habilmente ter um projeto, ou seja, ela teria que imaginar e antever mentalmente o objeto e como ele ou ela iria usá-la (a ferramenta). À medida que as ferramentas se tornaram cada vez mais complexas, inclusive em termos de terem funções cada vez mais específicas, mais abstração é necessária, de modo que caçadores capazes de uma maior capacidade de projetar teriam vantagens. Dai o funcionamento teleológico do nosso cérebro!


Essa hipótese evolutiva pode ser inclusive “testada” experimentalmente e Helen de Cruz e Joham de Smedt, em seu livro A Natural History of Natural Theology (MIT Press, 2015), descrevem uma série de experimentos psicológicos, alguns com crianças inclusive (tentando controlar efeitos culturais), que apoiam a ideia de que de forma inata temos uma tendência teleológica, pelo menos até que um pensamento racional possa estabelecer bases lógicas mais coerentes pelo menos para algumas das nossas observações (ver também Bloom e Weisberg na Science de 2007). Quando comparamos diferentes culturas que evoluíram independentemente, também percebemos que essa visão teleológica se aplica com frequência a seres vivos, pois sempre atribuímos uma função às suas características morfológicas (uma onça possui garras e dentes para caçar, enquanto um veado possui pernas longas para correr e assim sobreviver), que é algo também bastante discutido na filosofia da biologia (vejam o capítulo 3 da excelente introdução de Samir Okasha, Philosophy of Biology. da Oxford University Press).


O próximo ponto do raciocínio seria extrapolar do “projeto” para o “projetista”. Ai já não há um consenso de que somos inerentemente teístas (ou seja, que acreditamos em um ser superior como criador do Universo e da vida). O que conseguimos entender é que a adoção de visões materialistas ou naturalísticas em relação à complexidade depende das crenças a priori em uma Divindade. Como a mente humana trabalha de forma probabilística (mais precisamente, de forma Bayesiana...), ela atualiza constantemente suas probabilidades para a tomada de decisão a partir da chegada de novas evidências. Para alguém que tem uma visão de mundo teísta a priori, é muito mais difícil aceitar qualquer ideia de evolução ou processos naturais dando origem à complexidade (e vejam, como diz Richard Dawkins em seu livro “Deus um Delírio”, que de fato não existem “crianças religiosas”, existem sim crianças que são filhas de pais religiosos). Isso possui realmente implicações importantes para pensarmos em estratégias mais eficientes de popularização e divulgação cientifica são extremamente importantes. Não adianta apenas colocar mais e mais informação, pois a quantidade de “evidência” necessária para mudar a probabilidade de crença a priori tem que ser MUITO alta (em qualquer direção, ou seja, podemos estar falando de alguém que sempre pensou de forma materialista ser convencido de que não houve evolução e de que Deus criou a vida nos últimos 6 mil anos...).


A ideia de Cruz e Smedt, de forma bem simplificada, é pensar na relação entre "coincidências" e como estas podem se transformar em "evidência". Dizemos que algo é uma coincidência se a probabilidade do evento ocorrer dado o que sabemos (ou assumimos) é rara, e à medida que essas “coincidências” se acumulam elas podem nos fazer abandonar a ideia original (ou seja, coincidência se transforma em evidência). Então, para alguém que acredita em uma Divindade, a complexidade dos organismos é uma evidência de Sua existência, enquanto para alguém que tem uma visão materialista do Universo essa mesma complexidade seria uma coincidência, no sentido de ser um evento único ou fortuito, ou pouco provável, mas ainda assim independente da Divindade (que Darwin transformou em evidência ao estabelecer o princípio de seleção natural, atribuindo maior plausibilidade à origem da complexidade por uma combinação de processos aleatórios e deterministicos). Assim, uma mesma "informação" ou "dado" (no caso, a complexidade orgânica) pode ser vista como “coincidência” ou “evidência” para diferentes pessoas, dependendo da sua hipótese a priori (vejam o excelente artigo de De Cruz & Smedt, Paley’s Ipod: the cognitive basis of the design argument within natural theology, publicado no Journal of Religion and Science para uma apresentação formal dessa ideia; títulos interessantíssimos do artigo e do periódico, aliás...).


De Cruz & Smedt colocam, em resumo, que a explicação evolutiva e naturalística/Bayesiana (em termos de funcionamento da mente) rapidamente apresentada acima para o pensamento teleológico e para a ideia do DI explica bem por que as pessoas não se convencem tão facilmente mesmo quando confrontadas com muitas evidências, especialmente no sentido de um teísta aceitar a evolução como causa da complexidade, mesmo considerando tantas evidências atuais da evolução. Notem que, no sentido contrário, não há novas evidências do DI, apenas a crença "a priori" de que a complexidade implica em um Criador, o que de certo modo é um raciocinio circular...Me parece mais coerente assumir efetivamente que a crença no design é uma consequencia da crença em Deus, como explicitado na frase do cardeal John Henry Newman em 1870 e que aparece na epígrade da postagem: I believe in design because I believe in God, not in God because I see design. A explicação evolutiva também é coerente com o fato de que mesmo antes do Darwinismo alguns naturalistas (inclusive o avô de Darwin, Erasmus) não aceitavam a ideia de Paley, mesmo na ausência de uma explicação mecanística para a complexidade (ou seja, eles preferiam pensar em “concidência”, acaso operando em enormes escalas de tempo e espaço, do que aceitar a hipótese do DI).


Desculpem, mas não posso deixar de apreciar a ironia aqui: a melhor explicação científica para a crença em uma criação especial é a maneira como mente dos caçadores-coletores humanos EVOLUIU nos últimos milhões de anos! Além disso, podemos isentar Aristóteles da responsabilidade sobre nossa percepção enviesada do mundo...! Excelente!


O artigo de Cruz e Smedt sobre o "iPod de Paley" termina com uma indagação interessante, questionando se, nesse contexto do funcionamento Bayesiano da mente, ainda há espaço, em uma teologia racional ou natural, para a ideia de um projetista. Importante dizer, eles colocam explicitamente que a solução é sair de um contexto de discussão científica e pensar de forma metafísica (ou seja, não estamos questionando a teoria evolutiva a apoiando visões religiosas fundamentalistas a partir de dados empíricos...). Eles colocam duas possibilidades: a primeira é que alguém poderia invocar que, embora de modo geral a complexidade da natureza e a biodiversidade sejam fruto da evolução Darwiniana, existem algumas coisas que não entendemos e que, nesse caso, nada impede de "invocar" uma intervenção sobrenatural. Curiosamente, esse foi justamente um dos pontos de discórdia entre Wallace e Darwin, já no final da vida deste último (os dois divergiram também em relação ao funcionamento da seleção natural, mas essa é outra estória/história...). Wallace, que como sabemos foi o co-descobridor do princípio da seleção natural, passou a achar que a mente humana era complexa demais para ser explicada pela seleção natural e passou, inclusive, a adotar uma visão fortemente espiritualista.


Mas esse não é um bom argumento metafísico, pois cai na ideia do “Deus nas lacunas”. Ou seja, quando em um segundo momento conseguirmos entender o que não sabíamos antes (e a ciência tem feito continuamente um excelente trabalho nessa direção...), preenchemos a lacuna, de modo que não há mais espaço para um papel Divino como explicação. Precisamos, portanto, encontrar outra lacuna para continuar acreditando em Deus como criador... O que de Cruz e Smedt sugerem, portanto, é que a melhor maneira de pensarmos no DI é não tentar separar o papel da natureza e de Deus na criação da natureza. Para aqueles que têm necessidade de acreditar "em algo", é mais coerente e racional pensar nas duas coisas como sinérgicas. Na nossa escala de Scott, estamos falando então de um criacionismo evolutivo ou evolucionismo teísta (veja a escala na figura abaixo, para uma referência rápida). Então, no contexto metafísico e da teologia racional, o propósito de nossas vidas ainda poderia ser sustentado pela contemplação da complexidade e da natureza mesmo sem ir contra a evidência empírica em relação à evolução...





A ideia geral das pessoas, nesse contexto metafísico, é separar ciência de religião e tentar achar uma maneira de fazer com que as duas visões de mundo possam coexistir (não dos criacionistas e fundamentalistas religiosos, claro...). Stephen Jay Gould colocou, por exemplo, a ideia dos “magistérios não interferentes” no seu livro Pilares do Tempo, uma ideia simples de resolver os conflitos partindo do pressuposto que ciência e religião têm objetivos diferentes e devem estar em “compartimentos” diferentes da nossa mente. Embora seja uma ideia interessante e popular, ela parece não funcionar muito bem na prática, inclusive porque esbarramos na questão da especialização do conhecimento científico e das aplicações tecnológicas. Alguém pode achar que não precisa entender evolução e, por trabalhar, digamos, com ciência da computação, ou com física de materiais aplicada, pode se dar ao luxo de “negar” ou “não concordar” com a ideia de evolução por causa das suas crenças religiosas (ou, muito pior, defender essas crenças com uma atitude pseudocientífica). A visão de Gould, em um certo sentido, ao segregar as ideias e compartimentar o raciocínio para evitar conflitos pode terminar criando ainda mais problemas, como discutimos recentemente (pensando em teorias científicas). Claro, o evolucionismo teísta tem sido fortemente combatido pelos criacionistas e pelos defensores do DI (o que mostra que a ideia não deve ser de todo ruim...). Mas é uma solução racional e lógica para satisfazer a necessidade de uma crença religiosa e uma boa maneira de realmente "equilibrar" dois mundos diferentes, sem uma atitude paradoxal (para não dizer esquizofrênica...). Pelo que percebo, a visão de Helen de Cruz em seus diversos artigos e livros, a ideia, portanto, não é separar as duas visões de mundo, mas sim integrá-las!


Embora eu tenha, no fundo, uma visão pessimista em relação à educação dos nossos jovens e crianças e sobre a nossa capacidade de convencer as pessoas sobre a importância da Ciência, com bem colocou meu amigo Luis Mauricio Bini em uma postagem recente, acho que há sempre possibilidades...Como discuti na postagem sobre a “Escala de Scott”, ainda em 2019, estou cada vez mais convencido de que a melhor forma de combater o negacionismo e a pseudociência é o conhecimento. Não que seja fácil, claro...Mas, diferente do que tem sido colocado pela maior parte dos nossos colegas que trabalha com divulgação científica e que se preocupa com a discussão sobre Criacionismo vs. Evolucionismo, não estou falando do conhecimento científico sobre evolução (até porque se a aceitação depende das crenças a priori, o esforço em um sentido Bayesiano para alterar uma posição é muito grande e vai ser difícil de alcançar...). Estou falando inicialmente do conhecimento sobre teologia natural e sobre a história da religião e suas bases cognitivas. Muitas dessas pessoas com visões mais fundamentalistas passam o dia lendo a Bíblia e acham que estão “estudando” (mas onde estaria a visão crítica, o background teórico, a discussão?). Mas quem sabe isso já não é um bom começo no nosso mundo digital moderno no qual os jovens não se concentram mais do que alguns minutos sobre um texto...Será que apresentar algumas noções sobre teologia natural e reflexões mais profundas não poderia despertar um mínimo de interesse, talvez criar uma centelha de curiosidade? Talvez alguns insights, alguns questionamentos, possam ser colocados lá no fundo da mente de algumas dessas pessoas antes que alguém diga que "...isso é coisa do demônio"! Posso estar sendo ingênuo, como sempre... Mas talvez as pessoas simplesmente precisem entender melhor e pensar racionalmente sobre o que estão falando ao defender certos pontos de vista metafísicos e religiosos, especialmente quando elas acham que estão falando (ou ouvindo) sobre ciência. Elas precisam saber que há centenas, ou mesmo milhares de anos, pessoas como Aristóteles e tantos outros já se questionaram sobre isso...Quem sabe ajuda!





Imagens: Wikicommons

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