A recente portaria do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação (PORTARIA Nº 1.122, DE 19 DE MARÇO DE 2020) definiu as prioridades para a ciência no Brasil, em termos de financiamento e apoio a projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação, para os próximos três anos. Não cabe aqui apresentar os detalhes das linhas prioritárias, mas os interessados poderão verificar rapidamente que todas essas linhas se referem a “tecnologias”, o que gerou de imediato uma forte reação da comunidade científica, em especial pela carta enviada em 27 de março ao ministro Marcos Pontes pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Academia Brasileira de Ciência (ABC) (mesmo considerando que a divulgação da portaria ter ocorrido em meio à pandemia da COVID-19; ou, pensando melhor, até por causa do tema desta postagem!).
Em função das críticas, a portaria foi “flexibilizada” (passando a ser a portaria Nº 1.329, DE 30 DE MARÇO DE 2020), de modo que passam a ser “....também considerados prioritários, diante de sua característica essencial e transversal, os projetos de pesquisa básica, humanidades e ciências sociais que contribuam para o desenvolvimento das Áreas de Tecnologias Prioritárias do MCTIC”. Além disso, na nova portaria o objetivo de definir prioridades é “orientar” as políticas do ministério, não criar uma obrigatoriedade de atender a essas áreas tecnológicas (como na versão original). Entretanto, mesmo com essas alterações, a nova portaria continua demonstrando uma visão equivocada da natureza e do funcionamento da ciência, bem como do seu papel na sociedade moderna.
Tenho discutido essa questão de ciência básica, aplicada e tecnológica em algumas postagens anteriores, de uma forma mais abstrata. Meu ponto principal é que o conhecimento científico não deve se mover com foco nas aplicações, inclusive porque isso, em muitos casos, pode até mesmo ir contra muitos princípios e valores básicos da ciência. Isso não significa que devamos acreditar ingenuamente que a dinâmica da ciência não é, em maior ou menor grau, influenciada por aspectos da estrutura social e política e que esta não deve contribuir para a definição da agenda de pesquisa (como discutimos no caso da Eugenia). Mas o importante é que, nesse contexto, torna-se ainda mais equivocado fazer uma distinção entre ciências naturais e humanidades e, como temos visto na política do atual Governo, assumir explicitamente que as humanidades não devem ser apoiadas. Ao mesmo tempo, é muito difícil imaginar como descobertas científicas irão impactar a sociedade no futuro, gerando algo tecnologicamente importante (o que chamei de “argumento do bebê” anteriormente).
Assim, mesmo considerando a grande importância do desenvolvimento tecnológico para a nossa civilização atual, é equivocado priorizar essas áreas em detrimento da ciência básica (ou ciências humanas). Essa discussão pode parecer abstrata, mas o ponto é que com a pandemia da COVID-19 alguns aspectos importantes dessa discussão entre ciência básica e aplicada aparecem de forma mais clara. Quero discutir aqui e apresentar rapidamente algo muito interessante na minha área de atuação imediata, a Ecologia.
Desde o início da pandemia, e em especial desde o início das medidas de distanciamento e isolamento social, estamos vendo que cada vez mais colegas da área de Ecologia (muitos dos quais sempre trabalharam apenas com questões gerais ou teóricas) passaram a participar de discussões sobre a expansão da pandemia, em diferentes graus. Muitas informações começam a circular sobre a expansão da doença e muitos colegas estão utilizando seus conhecimentos de estatística e computação na análise de padrões e construção de modelos para sistemas complexos, tentando entender o que está acontecendo. Em um nível um pouco mais elaborado, podemos usar o nosso conhecimento mais amplo em Ecologia teórica e pensar nos modelos de crescimento populacional que ensinamos nos (bons) cursos de graduação em Ecologia. Hoje a palavra “Ecologia” está muito associada à crise ambiental e questões de conservação da biodiversidade (e não sem razão...), mas de fato a Ecologia possui um forte componente teórico e metodológico, em grande parte centrado epistemologicamente na dinâmica das populações das espécies. Essa dinâmica temporal é influenciada pelo ambiente, pela a interação entre as espécies (e, portanto, inclui a relação entre hospedeiros e patógenos) e pela estrutura espacial de diferentes populações da espécie conectadas por fluxo de indivíduos.
Há hoje uma grande quantidade de informação sobre os modelos epidemiológicos básicos na internet, bem como diversos programas e aplicativos mais ou menos simples que podem ser utilizados para fazer previsões e simulações de cenários de expansão da pandemia, alguns inclusive já específicos para a COVID-19 e outras bastante sofisticados, como o produzido pela Fiocruz. Entender esses modelos exige algum conhecimento básico de matemática e estatística, mas em princípio os bons alunos de cursos de Ecologia ou Ciências Biológicas são capazes de entender as propriedades gerais desses modelos. Já discutimos anteriormente o crescimento populacional humano sob diferentes cenários de avanço tecnológico e mostramos como o aumento rápido da população no início começa a se estabilizar à medida que o número de indivíduos começa a chegar próximo à capacidade de suporte, o K, o que cria uma padrão logístico, uma curva em forma de “S”.
Os modelos epidemiológicos básicos partem do mesmo princípio, mas a ideia é que eles estão avaliando não o crescimento da população (humana) em si, mas de fato a dinâmica de “compartimentos” dessa população, começando com os indivíduos que vão se infectando. No caso da COVID-19 com a qual estamos lidando, por exemplo, à medida que o vírus se espalha o número de pessoas infectadas aumenta e algumas delas apresentam sintomas e eventualmente algumas morrem (e aí o parâmetro mais falado é o chamado R0, que é o número médio de novas pessoas que cada pessoa infectada é capaz de contaminar, em condições "ideais" de transmissão). Mas, por outro lado, parte da população se recupera e se torna imune, de modo que à medida que a epidemia aumenta e mais e mais pessoas vão ficando doentes, o número total de pessoas que podem ser infectadas vai diminuindo. Isso cria o efeito logístico e, de fato, chega a um momento que há cada vez menos pessoas podem se contaminadas. Desse modo, a epidemia começa a diminuir rapidamente e tende a desaparecer. Essa é a ideia geral dos chamados modelos de compartimento da classe "SIR" (de Suscetíveis, Infectados e Recuperados) que tem sido tão usados para mostrar o impacto das medidas de isolamento social em termos de “achatar” a curva epidêmica. Esse achatamento ocorre porque, com um maior isolamento e distanciamento social, o R0 tende a ser menor, pois o contágio é menor. Assim, a epidemia avança mais devagar, dando mais tempo para que os sistemas de saúde consigam se organizar e ser capazes de receber os pacientes doentes da melhor forma possível (como demonstrado na figura abaixo).
Nesse contexto, claro que vocês já podem imaginar que esses modelos podem se tornar muito mais complexos e incorporar outros compartimentos, permitindo entender melhor incluindo os detalhes de progressão da doença (por exemplo, quantos pacientes irão apresentar um quadro mais grave e necessitar de internação ou quantos irão para a UTI ; cada um desses eventos se torna um compartimento). Na verdade, a epidemiologia é possivelmente a área mais avançada da Ecologia de Populações aplicada, dada a sua importância para a própria humanidade (vejam esse artigo de Anuwat Wiratsudakul e colaboradores como um bom exemplo da aplicação de técnicas e abordagens que são bem familiares para os ecólogos, aplicada ao caso da epidemia da Zika).
Então, a partir de seu conhecimento básico em Ecologia de Populações, certamente muitos ecólogos podem auxiliar, de diferentes formas, no combate a uma epidemia e ajudar os profissionais da saúde, gestores e tomadores de decisão em momentos de crise. No meu caso, por uma série de circunstâncias, fui chamado para participar de um grupo de discussão nas Secretarias de Saúde e da Fazenda do Estado de Goiás sobre a modelagem da pandemia e definição de cenários para otimizar a capacidade de resposta do sistema de saúde. Nesse contexto, terminei construindo um modelo de simulação baseado no indivíduo (Individual-Based Model; IBM), em uma abordagem similar à que tenho usado para estudar a evolução do tamanho do corpo em sistemas ilhas-continente, para implementar modelos epidemiológicos tipo SIR (Suscetíveis, Infectados e Recuperados). É uma longa história (mas com apenas duas semanas de duração e de trabalho intenso!), mas no final terminamos por construir alguns cenários que auxiliaram o Governo do Estado a prorrogar as medidas de distanciamento e isolamento social importantes para a contenção da pandemia! Em um próximo passo, meu colega Thiago Rangel já está usando uma abordagem bem mais sofisticada para adicionar a esse modelo básico a estrutura etária da população e uma dinâmica espacialmente explícita (no qual as populações podem ser municípios ou microrregiões), implementando-o em uma linguagem mais apropriada para simulações de grande escala e aumentando seu realismo! Já vemos que, quando incorporamos a estrutura etária específica do Estado de Goiás, por exemplo, temos uma redução de algo como 30-40% na mortalidade e isso deve cair ainda mais quando passarmos para modelos que consideram que as diferentes cidades podem possuir dinâmicas e realidades diferentes, apesar do fluxo de pessoas entre elas.
Vamos discutir as propriedades de modelos com diferentes objetivos em uma outra postagem, mas esse é um ponto importante para o argumento que desenvolvo aqui. Embora existam modelos globais sofisticados e construídos por equipes extremamente competentes e especializadas em epidemiologia que estão sendo usados como referência em todo o mundo (como os da equipe do Imperial College, da Inglaterra, eles dificilmente vão conseguir capturar as propriedades locais em escalas espaciais menores, ou mesmo nos países. Isso se torna ainda mais complicado se pensarmos em regiões, Estados ou municípios, no nosso caso. Então, é interessante que os ecólogos possam auxiliar na adequação dos modelos e suas previsões para escalas mais locais, seja desenvolvendo ou reajustando esses modelos com informações locais ou, minimamente, ajudando os gestores e tomadores de decisão a implementar os modelos gerais entendendo as suas limitações.
Começo a ver que essa possibilidade de tentar ajudar na solução desse nosso problema atual da pandemia está acontecendo paralelamente em todo o Brasil. De fato, mesmo no Departamento de Ecologia da UFG, ao qual estou associado, temos outros professores fazendo o mesmo movimento. Minha colega Luísa G. Carvalheiro, está auxiliando a modelagem da epidemia em vários estados do Brasil (e outros países), utilizando modelos de crescimento logístico ajustados por máxima verossimilhança com base em dados empíricos das séries temporais que permitem integrar indiretamente múltiplos fatores desconhecidos específicos a cada estado que afetam a velocidade de propagação do vírus, e como base nos quais é possível aplicar a lógica dos modelos SIR e estimar o pico da epidemia, e prever a progressão do número de infectados, recuperados, e hospitalizados. Ao mesmo tempo, meu colega Rogério Bastos usa essas informações em postagens quase que diárias no seu Facebook, mostrando as projeções e ressaltando para todos a importância de manter o distanciamento/isolamento social. Esse trabalho de divulgação científica é extremamente importante inclusive porque já vemos posições políticas negacionistas em relação à pandemia, como a do senador Osmar Terra, que parece ser absolutamente incapaz de entender os aspectos básicos dos modelos mais simples em epidemiologia (sobre essa questão da ignorância durante a crise sugiro o excelente ensaio dos meus colegas Geraldo Fernandes (UFMG) e Sérvio Ribeiro (UFOP).
Em um contexto um pouco mais amplo e pensando em escalas biogeográficas, vários trabalhos têm sido desenvolvidos por ecólogos do Brasil. No contexto do nosso GT em “Macroecologia & Macroevolução” do Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia (INCT) em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade, coordenado pelo meu colega Ricardo Dobrovolski da UFBA, avaliamos como as taxas de crescimento na fase exponencial da COVID-19 podem ser melhor explicadas pelas conexões internacionais entre os países do que por efeitos de clima, como discutimos em detalhe na postagem anterior. Esse aspecto é importante uma vez que há muitas implicações sobre o papel do clima no avanço da pandemia. Nosso colega Miguel Araújo, do Museu de Ciências Naturais de Madri, divulgou há algumas semanas um pre-print utilizando modelos de nicho ecologico para prever a expansão da COVID-19, no qual as adequabilidades climáticas do vírus seria menor nas regiões tropicais, como acontece com outros virus (e esse argumento tem sido utilizado inclusive como parte da política anti-isolamento social...). É importante esclarecer isso inclusive porque, mesmo que haja algum efeito do clima reduzindo a velocidade de expansão da pandemia no Brasil, por exemplo, a pobreza e diversos problemas de saúde pública no Brasil podem rapidamente diminuir esse efeito e ampliar o impacto da pandemia, como escreveu o Miguel na última versao do seu preprint!
Ainda nesse contexto da conexões levando à difusão da pandemia, um grupo interdisciplinar de cientistas do Brasil e do México, incluindo os meus colegas Sérvio Ribeiro (UFOP) e Geraldo W. Fernandes (UFMG), construiu um modelo para descrever a dinâmica da disseminação da COVID-19 no Brasil, acoplando modelos SIR à rede de transporte aéreo do Brasil. O modelo gera previsões alarmantes para a transmissão e aponta regiões de maior vulnerabilidade... Mas, ao mesmo tempo, sugere que um protocolo severo de vigilância de entrada, bem como o monitoramento de pessoas que cheguem de regiões de risco, deveria ser adotado nos aeroportos de todo o país para mitigar os efeitos da expansão. Os pesquisadores concluiram que a falta desses protocolos de vigilância tornou o Brasil muito vulnerável. A adoção dessas medidas seria particularmente importante para a Amazônia, pois a cidade de Manaus (que aliás já está em uma situação alarmante, infelizmente...), é o centro regional capaz de espalhar a COVID-19 e expor, em pouco tempo, uma quantidade considerável de populações indígenas e pequenas cidades e vilas remotas, com serviços públicos de saúde precários. Talvez ainda haja tempo para pelo menos mitigar esse efeito perverso com uma melhor vigilância nos aeroportos, especialmente na região norte do país.
Em São Paulo, meus colegas Paulo Inácio Prado e Paulo Guimarães (Depto de Ecologia da USP) se juntaram a colegas de outras instituições para criar o Observatório COVID-19 BR (https://covid19br.github.io), um consórcio independente de pesquisadores e pesquisadoras das áreas de física, matemática, computação e biologia. O observatório desenvolve modelos e análises para contribuir com o debate público, popularizando conceitos como crescimento exponencial e tempo de duplicação da epidemia. Também forneceu argumento em veículos importantes a favor das medidas de isolamento e alertando para o sério problema de atraso das notificações nas contagens oficiais de casos. Em parceria com a Secretaria de Saúde do Município de São Paulo - metrópole com maior número de casos no Brasil – o observatório tem construído conhecimento para a gestão e com os gestores, como estimativas de ocupação de leitos e correções de atrasos de notificação nas bases de dados.
Em um contexto mais específico, abordagens usadas em ecologia para estudar efeitos indiretos entre espécies interagindo em comunidades ecológicas também estão sendo usadas para inferir a vulnerabilidade de regiões do Estado de SP à epidemia. Da mesma forma que espécies interagindo formam redes de interações, o fluxo rodoviário entre regiões forma redes de fluxo de pessoas na qual a doença se propaga. Essas análises, que estão sendo feitas em parceria com o Coronel Eduardo Migon do Laboratório de Estudos de Defesa da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (LED/ECEME), tem como objetivo gerar subsídios para a tomada de decisões. Este grupo sobre redes de contágio conta com a participação de 20 cientistas de 14 instituições, todas(os) parcialmente ou totalmente formadas(os) em ecologia.
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), colegas dos Departamentos de Ecologia (Valério Pillar e Leandro Duarte) e Genética (Lavínia Schüler-Faccini e Nelson Fagundes), juntamente com pós-doutorandos dos Programas de Pós-Graduação em Ecologia e em Genética e Biologia Molecular e vários estudantes de pós-graduação, uniram-se para avaliar, a partir de dados das notificações realizadas na atenção básica à saúde ou em hospitais, o quanto sinais clínicos de COVID-19 (febre, tosse, etc.) em pacientes no Rio Grande do Sul estariam associados entre si e a características dos/as pacientes tais como idade, sexo e comorbidades. Para isto, os pesquisadores pretendem aplicar ferramentas analíticas amplamente utilizadas em Ecologia de Comunidades. A partir desta avaliação, os pesquisadores pretendem aplicar testes de modelos causais para avaliar a influência de características dos pacientes e da presença do vírus sobre os sinais clínicos e ocorrência de desfechos adversos.
Esses são apenas alguns exemplos, com certeza há muito mais ecólogos e biólogos trabalhando “emergencialmente” nessa questão (e vejam inclusive a campanha do CRBio-4 nesse sentido). Na verdade, pensando em um contexto histórico, esse interesse dos ecólogos por epidemiologia e esse forte potencial de integração que estamos vendo aqui não é algo recente. Thomas Lewinsohn, professor de Ecologia da Universidade de Campinas (Unicamp), destaca que os modelos mais influentes e usados para entender e predizer a propagação da COVID-19 hoje vêm sendo desenvolvidos em duas instituições inglesas, o Imperial College e a Escola de Medicina Tropical e Higiene. Esses estudos não surgiram de repente. Em 1979, Roy Anderson e Robert May, então pesquisadores do Imperial College, desenvolveram um modelo geral para entender a dinâmica de doenças infecciosas, aplicando princípios da Ecologia de Populações. Lewinsohn era pesquisador no Imperial College no início dos anos 1990 quando esses pesquisadores acabavam de publicar os primeiros modelos para a epidemiologia do HIV. Ele se lembra das discussões entre ecólogos das mais diversas áreas sobre os políticos que ainda hesitavam em incorporar esses achados científicos para implementar políticas públicas mais incisivas. Lewinsohn também nota que, pelos critérios atuais de priorização de financiamento aplicado do CNPq, Finep e CAPES, esses pesquisadores teriam dificuldades em obter apoio para seu trabalho: Roy Anderson era pesquisador de vermes parasitos de peixes, e Robert May físico teórico de formação. Ainda assim, esses dois “não-especialistas” produziram em 1991 o livro que é um dos alicerces da infectologia contemporânea, com mais de 2.000 citações em artigos dessa área.
Mas, a essa altura, muitos de vocês podem estar achando que isso tudo é muito fácil então para os ecólogos e que, portanto, eles são capazes de resolver os problemas da pandemia, pelo menos em termos de previsão de eventos e construção de cenários. De modo algum, entender os modelos é apenas o começo... Em primeiro lugar, os modelos em epidemiologia são muito mais específicos do que aqueles que ensinamos em nossos cursos gerais de Ecologia, inclusive porque o objetivo é que eles sejam tão realistas quanto possível, de modo que eles perdem generalidade (mas vamos discutir isso com bem mais calma depois...) e definir os parâmetros que vão ser utilizados é uma questão delicada se queremos que os cenários que vamos construir sejam úteis de alguma forma (cabe muito bem aqui a frase clássica do grande estatístico E. P. Box, “todos os modelos estão errados, mas alguns deles são úteis”). Precisamos, portanto, conversar muito com os colegas da área médica e de saúde, os epidemiologistas e infectologistas, bem como outros profissionais da área de saúde, que irão ter uma compreensão muito melhor do fenômeno “em si”. Eles entendem melhor o que significam os diferentes compartimentos e em que situações as pessoas são “transferidas” entre eles (por exemplo, o que leva uma pessoa à hospitalização, ou em que condições a doença se agrava e o paciente passa a necessitar de uma UTI). No caso da COVID-19, por exemplo, em pouco mais de uma semana, Thiago (Rangel) e eu construímos uma parceria muito efetiva com uma colega do Instituto de Patologia Tropical (IPTSP) aqui da UFG, a Dra. Cristiana Toscana, e foi ela quem permitiu avançar na construção do modelo apresentado à Secretaria de Saúde do Estado de Goiás (e que continuamos a aperfeiçoar agora).
Isso pode ser certamente colocado em um contexto mais amplo e há diversas evidências de que a pandemia está rapidamente mudando a maneira como fazemos ciência. Durante anos temos discutido, principalmente no Brasil, questões sobre colaborações entre diferentes área da Ciência, em termos de multi, inter e transdisciplinaridade. Apesar da importância potencial, sempre achei que muitas dessas discussões pareciam distantes da realidade e de implementação muito difícil, principalmente em função da estrutura social da academia. Mas talvez faltasse um objetivo e um propósito comum...Como disse meu colega Paulo de Marco Jr aqui da UFG, “Os cientistas de várias origens distintas são treinados para se aprofundar no conhecimento em suas áreas, cada uma delas com seus conhecimento técnicos e formas de raciocínio. Mas, por trás de tudo isso, há uma forma única de pensar, em termos de método científico...Nesse momento em que a sociedade inteira enfrenta uma pandemia, nós estamos observando na “paisagem” ocupada pelos cientistas nas Universidades, Institutos, um exercício de cada um deles, nas suas especialidades, para tentar contribuir para um entendimento melhor do que estamos vivendo.”
Isso também nos leva a outro ponto importante, pois não adianta construirmos os modelos ou fazermos análises estatísticas sofisticadas se isso não for de alguma forma útil para os tomadores de decisão nos órgãos Governamentais (como as Secretarias de Saúde dos Estados ou dos Municípios). A interação entre a academia e os órgãos públicos envolvidos nessa questão é bastante complexa e passa por uma série de problemas. Por um lado, é bem possível que os órgãos não se interessem pelas análises realizadas porque os gestores podem não compreender bem como elas funcionam, ou por não confiarem nos parâmetros utilizados pelos pesquisadores. Por outro lado, isso sugere claramente que esse conhecimento científico, para ser aplicado, precisa ser construído coletivamente entre os pesquisadores e as pessoas que vão, em um segundo momento, utilizar essa informação para tomar decisões.
Essa discussão sobre a colaboração entre os pesquisadores e os gestores ou tomadores de decisão nos leva ainda a um próximo nível de necessidade de integração, pois não basta pensarmos na saúde pública e nas medidas de isolamento e distanciamento, é preciso avaliar todo um cenário socioeconômico e político nas decisões Governamentais (a discussão não é tão simples e trivial quanto tem sido feita, em termos de “escolher” entre “vidas e economia”). Mas essa questão de tomadas de decisão sobre cenários complexos e com alto grau de incerteza é um outro assunto, muito complicado por si só.
A mensagem final, portanto, é que a distinção entre ciência básica e aplicada está longe de ser algo “real”, e adotar esse tipo de postura em uma portaria de prioridades de pesquisa demonstra incompreensão do funcionamento da Ciência. Na verdade, entendo que essa postura torna mais difícil que a ciência possa responder em momentos de crise. O que importa é termos pesquisadores bem formados e capacitados que estão perseguindo suas linhas de pesquisa de interesse e avançando no conhecimento geral. O que estamos vendo é que esses pesquisadores, quando chamados, podem rapidamente passar a atacar outros tipos de problema, interagir com pesquisadores de outras áreas e, assim, auxiliar os tomadores de decisão em problemas socialmente relevantes. Como disse H. Holden Thorpe, editor da Science, em seu excepcional editorial de 13 de março, a ciência deve ser continuamente apoiada e só pode funcionar em momentos de crise se ela for constantemente valorizada e receber financiamento contínuo. Para alguns dos meus colegas otimistas, essa crise da COVID-19 tem o potencial de resgatar a credibilidade por parte da sociedade e mostrar para diversos governantes que é uma boa política de Estado apoiar continuamente a ciência e a educação!
Agradeço muito aos meus colegas Luis Mauricio Bini, Thiago Rangel, Luísa Carvalheiro, Rogério Pereira Bastos, Paulo Inácio Prado, Paulo Guimarães Jr, Paulo de Marco Jr., Leandro Duarte, Geraldo W. Fernandes, Levi Carina Terribile, Ricardo Dobrovolski, Marco Tulio Pacheco, Mariana Telles e Thomas Lewinsohn pelas discussões, depoimentos e contribuições ao texto...Como sempre, “I get high with a little help from my friends...”
Muito bom o raciocínio Zé. Hoje estava pensando também o quanto a universidade assumiu o “peso” da pandemia desde as atividades de cunho científico às assistencialistas. Se a população como um todo não enxergar a importância da ciência e das universidades nesse cenário, eu não sei quando será.