Na última postagem discutimos a questão do “racismo científico” no pensamento de Darwin, ampliando a discussão para as acusações mais recentes das ligações (inesperadas) de E. O. Wilson com supremacistas brancos nos EUA. Certamente, um tema deprimente e que causou algumas controvérsias e discussões (umas muito interessantes, outras nem tanto...). Tinha decidido não voltar a esse assunto e lidar com minhas frustrações e incertezas privadamente, mas ao ler o excelente livro de Aubrey Clayton, “Bernoulli's Fallacy: Statistical Illogic and the Crisis of Modern Science”, sobre a história da inferência Bayesiana em estatística, me vi novamente refletindo sobre o tema. E agora o centro das minhas preocupações foi outro dos meus heróis científicos, (Sir) Ronald A. Fisher (1890-1962). Vamos discutir rapidamente o problema, mas, ao mesmo tempo, quero entender melhor tudo isso e pensar em diferentes soluções para a questão. De fato, acho que a ideia seria mesmo voltar um pouco e discutir o que Monica McLremore propôs no ensaio dela na Scientific American, desencadeando essa discussão aqui no “Ciência, Universidade e Outras Ideias” no início do ano, ou seja, “o que fazer com o legado de cientistas racistas” (continuo discordando da maneira como ela coloca e de vários detalhes, mas de fato reconheço que a pergunta é cada vez mais importante mesmo!).
Nos últimos 25 anos como professor tenho chamado a atenção, nas várias disciplinas ligadas à Biologia Evolutiva, de que Ronald Fisher seja talvez a figura mais negligenciada da história da Genética e da Biologia Evolutiva, considerando a importância do seu trabalho de unificar a genética biométrica com a genética Mendeliana e, em seguida, resgatar a importância do pensamento Darwiniano original e lançar as bases da teoria matemática da seleção natural. Para isso, Fisher criou muito da abordagem estatística clássica que estudamos nos cursos de estatística, além de formular a ideia de máxima verossimilhança, que tem aplicações mais amplas em outras formas de inferência.
Não há nenhuma discussão sobre a enorme contribuição de Fisher para a Biologia e para a Estatística, e isso fica claro nas suas publicações (vejam a lista e outras informações aqui nos arquivos da Universidade de Adelaide, na Australia). Mas, se vocês olharem a lista com um pouco mais de atenção, vão ver várias publicações de Fisher no Annals of Eugenics (uma revista fundada por Karl Pearson em 1925 e que mencionei na postagem anterior sobre eugenia; o artigo de abertura da revista, escrito por Pearson, é realmente deprimente...). Isso nos remete ao tema central desse ensaio e traz de volta, mais uma vez, a questão do “racismo científico” inerente ao pensamento de importantes cientistas na área de Biologia Evolutiva.
Clayton chama bastante atenção em seu livro para a ligação entre Fisher (e Pearson) e a Eugenia, e mostra inclusive como vários dos métodos estatísticos propostos por eles foram desenvolvidos nesse contexto. Esse tópico é bem conhecido e não vou retomar aqui todas as falas, ações e publicações de Fisher que o colocam nessa posição. Mas, de modo geral, sempre se entendeu que Fisher era “um homem do seu tempo” e, portanto, estava imerso em todo o pensamento eugenista e racista. Em um artigo detalhado publicado em 2021 na Heredity (periódico fundado aliás pelo próprio Fisher e por C. D. Darlington em 1947), Walter Bodman e colaboradores reforçam esse argumento e tentam mostrar Fisher como um eugenista - sem dúvida em relação a isso - mas não como um racista, no sentido que entendemos hoje. É a ideia da eugenia “positiva”, cujo objetivo seria melhorar a Humanidade e não causar dor e sofrimento. Embora haja um certo consenso de que Fisher era realmente menos racista do que outros geneticistas contemporâneos (como o próprio Pearson), achei o artigo de Bodmer um pouco forçado e, na prática, esse argumento de que ele seguia a visão do seu tempo nem sempre se sustenta, e talvez com razão (algumas passagens da defesa chegam até a ser constrangedoras, na minha opinião). Recentemente um painel comemorativo em homenagem a Fisher foi removido da Universidade de Cambridge após protestos sobre seu envolvimento com a eugenia, bem como outras ações na mesma direção em outros fóruns e sociedades científicas (vejam aqui uma discussão sobre o ocorrido e sobre essa cultura de “cancelamento” dele e de outros pesquisadores em situação similar). Diga-se de passagem, além das questões mais conhecidas ligadas à eugenia, há também uma crítica ao envolvimento de Fisher nas discussões sobre a relação entre fumo e câncer que, de certo modo, envolvem questões semelhantes em termos de avaliação da evidência disponível (vejam o ensaio de S. J. Gould no “Dinossauro no Palheiro”, lançado no Brasil em 1977).
A ideia de “homem do seu tempo” comum atualmente, embora possa ser realmente válida em algum sentido, nos leva à questão colocada por Jeremy DeSilva, do Dartmouth College, em relação a Darwin. Ou seja, mesmo entendendo que esse seria o pensamento dominante do seu tempo, esperaríamos mais dele, afinal era o Darwin! Para mim, certamente esse mesmo questionamento vale em relação a Fisher. Afinal, estamos falando de Sir Ronald Fisher!!!!! Mas será? Fiquei me perguntando se realmente seria possível que ele não tivesse percebido os problemas da Eugenia, mesmo assumindo a visão mais ingênua de neutralidade da ciência (também parte inerente do pensamento em ciências naturais à época) e assim ignorando os outros pontos problemáticos mais óbvios dela, sob um ponto de vista sócio-político, bem ilustrados após a ascensão do Nazismo. Aliás, é interessante chamar atenção que essas discussões sobre racismo e eugenia não envolviam (apenas) os negros, como parece ser nosso ponto focal aqui no Brasil e nos EUA hoje - provavelmente pelas questões históricas ligadas à escravidão a partir do século XVI – e estavam aparentemente centradas na questão dos Judeus e nas políticas de imigração da Europa oriental e do oriente médio (e o artigo inaugural de Pearson no Annal of Eugenics é justamente sobre isso, e claro que esse ainda continua sendo um tópico relevante hoje na Europa, inclusive na crise de refugiados causada pela invasão da Ucrânia).
Mas, voltando ao Fisher e aos demais eugenistas, fiquei pensando que a raiz do problema pode estar, de fato, na ideologia do progresso. Já comentei aqui no blog algumas vezes que evolução não é progresso e sempre criticamos a “visão da escada”, tão bem ilustrada na progressão do ancestral antropoide ao homem moderno que vemos o tempo todo. Combatemos essa visão de evolução e dizemos que evolução biológica é diferente da concepção mais "popular" sobre evolução, que está inerentemente ligada a progresso (vejam uma discussão inicial sobre isso aqui no blog ). Sempre falamos que o próprio Darwin dizia que não é possível ou correto falar em organismos “superiores” e “inferiores” (embora ele tenha usado essa expressão ao se referir às raças humanas...). O que sempre colocamos é que a evolução não é direcional, não existe um organismo "ideal", e as mudanças não levam a um ponto “otimum” global. Ou seja, a evolução não significa que os organismos “melhorem” ao longo do tempo, eles estão apenas se ajustando localmente ao ambiente, que muda constantemente. Embora nos nossos modelos às vezes tenhamos valores “ótimos” em termos de seleção natural (e mesmo assim há muita discussão sobre isso, em termos de realismo...), esses ótimos sempre mudam com o ambiente e com a situação, sendo justamente por isso que surge a diversidade ao longo do tempo. Se não fosse assim, teríamos uma visão direcional da evolução, como por exemplo voltando à ideia original de Lamarck no início do século XIX de que as diferentes linhagens de organismos estariam todas evoluindo “em direção” à uma "forma superior", paralelamente, só que como cada uma delas estaria em um momento diferente dessa trajetória, teríamos diversidade. Existem muitas outras ideias similares ou de certo modo derivadas dessa visão lamarckiana, a maior parte delas incluindo fortes componentes metafísicos ligados ao vitalismo e à “força vital” Aristotélica, incluindo a ideia de ortogênese que dominou a paleontologia no início do século XX. Outro exemplo famoso é a visão de Teilhard de Chardin (1881-1955), que foi importante por conseguir (após alguns trancos e barrancos...) conciliar a visão teológica da Igreja Católica com a ideia mais ampla de evolução biológica, dizendo que a evolução iria em direção ao “ponto ômega”, a um “ser perfeito” simbolizado por Cristo (aliás, seria coincidência que, nesse contexto, Jesus seria representado no nosso imaginário popular como um homem de olhos azuis e cabelos loiros? “...Fascinante”, como diria Spock...desculpem, mas não resisti...).
Mas é isso. Combatemos essa visão de evolução linear e direcional e dizemos que ela é Darwiniana (diferente da Lamarckiana), mas, pensando melhor, acho que preciso pensar com mais calma e rever a questão da compreensão do progresso biológico por parte dos biólogos. Na verdade, essa concepção parece estar no centro de muitos problemas, como Stephen J. Gould sugeriu já há muito tempo. Como fui formado nessa tradição “gouldiana”, talvez eu tenha subestimado a questão e achado que os biólogos realmente entendem evolução como diversificação, de forma quase que irrestrita, de forma independente de "progresso". Mas estou começando a achar que não, que a visão “progressista” da evolução permanece sempre latente no pensamento dos cientistas. Sendo assim, a ideia de eugenia até meados do século XX e suas implicações para apoiar visões racista passa a fazer mais sentido sob a perspectiva deles (continua sendo não aceitável hoje, claro, mas é compreensível no sentido de entendermos historicamente porque cientistas tão importantes quanto Fisher, e talvez até Wilson mais recentemente, tenham adotado visões eugênicas ou racistas). De qualquer modo, o ponto então é que precisamos discutir a evolução de forma mais ampla e não achar que o racismo independe dessa concepção.
O que quero dizer, portanto, é que os biólogos, conscientemente ou não, acham que a evolução vai “melhorar” mesmo os organismos e os leva a picos adaptativos mais “elevados”. Não é simples avaliar quando essa visão mais progressista predomina no pensamento de um cientista, mas vejam que Fisher, em seu “clássico” de 1930, The “Genetical Theory of Natural Selection”, propôs o famoso teorema fundamental da seleção natural, que ele inclusive disse ser análogo à 2ª. Lei da termodinâmica na Física e que indicava que a aptidão (parcial) média sempre aumenta (há muita discussão sobre a interpretação e validade do teorema, tanto em termos teóricos quanto aplicados; os interessados podem começar pela excelente revisão de Samir Okasha). Também no “Genetical Theory of Natural Selection”, Fisher discute amplamente a questão da melhoria da sociedade e do colapso das civilizações antigas, no contexto eugênico, claramente pensando em evolução (social) direcional. Sewall Wright, outro geneticista extremamente influente do início do século XX e um dos fundadores da teoria sintética dos anos de 1940-1950, em sua “teoria do equilíbrio deslocante”, coloca que na “Fase III” da teoria haveria uma competição entre os picos adaptativos mais elevados, algo que sempre foi controverso. Então, não é à toa que Gould passou tanto tempo defendendo que evolução não é progresso, sendo muitas vezes acusado de ter uma perspectiva quixotesca e de misturar ciência e política por biólogos evolucionistas mais ortodoxos, como Richard Dawkins.
Alguns podem questionar por que não conseguimos resolver “objetivamente” essa questão, pois seria simplesmente uma questão de avaliar tendências de características ao longo da evolução a partir de filogenias ou dados paleontológicos (e, de fato, é possível detectar tendências em alguns casos, como na encefalização nos primatas e nos hominíneos). O problema, filosoficamente, é definir se isso é “progresso” ou não e se, de fato, "melhoria" e "progresso" são termos cientificamente relevantes. Vamos discutir melhor em algum momento, mas realmente há muitas dificuldades operacionais aí, isso está longe de ser uma questão simples e há muita discussão em torno desse tema (mais uma vez os interessados podem ver o clássico de Michael Ruse “From Monad to Man” e artigo um pouco mais recente de Timothy Shanahan na Bioscience)...
Sendo assim, seria importante mudar o foco da discussão, especialmente em um contexto de evolução humana (por suas implicações óbvias para a questão do racismo). O problema não está na diversidade (genética) humana existente ou no quanto características morfológicas ou comportamentais seriam determinadas por genes ou ambientes, em um contexto sociobiológico, como coloca McLemore no ensaio da Scientific American, mas sim na visão mais ampla de evolução como progresso. Claro, isso exige uma discussão bem mais detalhada, pois há vários aspectos a serem considerados, mas o ponto central seria que precisamos defender é que os biólogos tenham um “compromisso (inquestionável) com a diversidade”! E, já adiantando, é justamente daí que vem a minha decepção com as revelações sobre E. O. Wilson. Percebi que essa ideia estava no último parágrafo da minha postagem inicial o defendendo das acusações de racismo.
Isso nos leva ao último ponto que quero levantar nessa postagem, e voltamos rapidamente à questão inicial “do que fazer com o legado dos cientistas racistas” colocada por McLemore. Apesar de algumas opiniões discordantes, a maior parte dos comentários de colegas e amigos em relação às duas últimas postagens cai bem na ideia do “homem do seu tempo”, e que precisamos separar a contribuição científica das questões mais pessoais, seguindo adiante. Posso viver com isso, adicionando o fato de que precisamos entender melhor a origem do problema e porque a pessoa tinha essa visão (como colocando Fisher no contexto de uma visão mais ampla de “evolução como progresso”). No caso de figuras tão importantes como Darwin, Fisher e Wilson, porque eles não viram os problemas e não foram pioneiros em uma visão mais moderna, digamos assim? Claro, operacionalmente precisamos ver também o quanto da ideologia afetou as conclusões teóricas ou a validade dos métodos usados pelo pesquisador e estar atentos a isso. Essa é, pelo menos em parte, a primeira estratégia que McLemore coloca, quando diz que ” …this approach includes thinking critically about where and when to include historically problematic work and the context necessary for readers to understand the limitations of the ideas embedded in it “. Acho que na nossa área de ciências naturais isso é um pouco mais fácil, mas mesmo assim...Isso pode nos ajudar a evitar, potencialmente, problemas similares no futuro. Em uma passagem pouco conhecida e questionável (segundo Peter Godfrey-Smith), o importante filósofo da ciência Irme Lakatos (122-1974) disse que precisamos reescrever retrospectivamente a história das descobertas para que elas aparentem ter sido feitas da forma mais racional possível, o que é um pouco estranho (para dizer o mínimo). É meio obscuro, de fato, mas talvez a ideia de Lakatos seja que, se tudo são narrativas de qualquer modo, talvez seja o caso de focar no que é importante e relevante, mas claro sem apagar da memória os aspectos ruins de um cientista. Mas será que é isso mesmo? Tenho lá minhas dúvidas, mas seguimos...
De qualquer modo, reconheço que minha frustração nesses casos todos, de Darwin a Wilson, passando por Fisher, é devida à uma visão enraizada e romântica que tenho sobre a ciência. Sempre falei das “virtudes do sábio”, no contexto estóico, mas ao mesmo tempo já critiquei aqui a visão ingênua da ciência como sendo objetiva e independente de questões políticas, culturais etc. Nesse sentido, até paradoxalmente, a minha frustração é totalmente emocional e não racional; se fosse, eu não teria, como me chamaram atenção alguns colegas, “over-reacted” em relação ao caso de E. O. Wilson, por exemplo. Tudo bem, posso até aceitar a crítica, mas acho que faz parte e se eu me senti dessa forma, é porque tenho consciência de que há algo para se preocupar. E mesmo que eu racionalmente critique e entenda a visão ingênua da ciência objetiva e neutra, não acho que podemos abandonar totalmente as "virtudes do sábio", inclusive porque sabemos que hoje o que vai diferenciar a ciência do negacionismo e da pseudociência é justamente a questão da atitude, como ressalta Lee McIntyre no seu “The Scientific Attitude”. Precisamos discutir com mais calma e retomar a ideia da demarcação e investigar melhor a ideia do “homem do seu tempo” nesse contexto. Na realidade, essa é uma discussão antiga em filosofia da ciência, sobre o seu aspecto normativo e descritivo. Será que a ideia filosófica é definir o que é ciência sob um ponto de vista ideal (seja a priori em um sentido “fundacional” ou a posteriori em uma visão naturalística, mais moderna) ou simplesmente descrever como ciência funciona no dia a dia. De modo geral vamos chegar a um meio termo e, sob uma perspectiva naturalística, é importante aprender com os erros e nos perguntarmos se um viés ligado, por exemplo, a uma visão (ideológica) de progresso na evolução pode efetivamente favorecer visões eugênicas e até racistas.