Como já discutimos aqui no “Ciência, Universidade e outras Ideias” e como vemos diariamente na mídia e nas redes sociais, estamos passando por uma “2ª. Onda” da pandemia da COVID-19 no Brasil. Independente de questões mais semânticas, começamos a ver claramente uma nova aceleração das transmissões a partir do final de 2020, depois de um período em que a maior parte dos locais já estava em fase de desaceleração.
Tivemos o problema sério em Manaus no final do ano, repetindo o que ocorreu ainda em abril / maio de 2020, mas como a dinâmica da COVID-19 é muito lenta, só agora em meados de fevereiro é que começamos a ver realmente as consequências dessa mudança de trajetória na maior parte do Brasil. Não faltaram notícias, nas últimas semanas, sobre hospitais lotados, profissionais da saúde na linha de frente exaustos e prefeitos e governadores (pelo menos alguns...) tentando implementar novas restrições, como sempre atacados pelo “setor produtivo”. Tudo de novo...
A questão agora é tentar entender melhor o que está acontecendo e, realmente, temos algumas novidades em um contexto epidemiológico. Temos novos fatores que estão criando “novos equilíbrios” na dinâmica da pandemia, de modo que as trajetórias dessa nova onda, em termos de casos, hospitalizações e óbitos, será provavelmente diferente da primeira. Na realidade não sabemos bem qual será esse comportamento e o que quero explorar aqui é justamente a maior complexidade de fatores envolvidos nessa dinâmica e suas interações ou sobreposições (coincidências temporais), tornando as projeções bem mais complicadas e incertas.
Os Novos Equilíbrios
A ideia de equilíbrio aqui se refere a uma questão básica dos modelos do tipo SIR que já comentamos algumas vezes. Vamos lembrar que a ideia básica dos modelos SIR é que, por um lado, o agente infeccioso (no caso, o SARS-COV-2) vai sendo transmitido entre as pessoas da população com uma “velocidade”, que é expressa pelo R0, ou seja, o número médio de novos infectados no tempo t + 1 a partir dos infectados em t. Isso significa que, após um dado intervalo de tempo (chamado de “intervalo serial”, que no caso do coronavírus está entre 4 e 6 dias), se o R0 é igual a 2,5, por exemplo, então 100 casos darão origem a 250 novos casos. Entretanto, à medida que a epidemia avança, algumas pessoas da população que já foram infectadas e se tornam (em princípio) imunes (ou, infelizmente, morrem), de modo que o número de suscetíveis na população começa a diminuir. Isso significa que, embora o R0 seja em princípio igual a 2,5, fica cada vez mais difícil achar um suscetível na população, de modo que a probabilidade uma transmissão “total” ou “integral”, que era em princípio igual a 2, tende a diminuir. Então, dizemos que o R efetivo (Re), em um dado tempo t, tende a diminuir e assumimos, por simplicidade, que esse decaimento do Re é uma função inversa do número de suscetíveis. Isso gera uma curva de crescimento acumulado perfeitamente logística, em forma de “S”, uma curva com um pico central de novos casos por dia. Assim, esse modelo mais simples só tem realmente um parâmetro, o R0, além do tamanho total da população inicial (pois na verdade a dinâmica de casos é uma função inversa do número de suscetíveis). Vejam a figura abaixo para relembrar essa dinâmica do R0 e Re, o que já tinhamos explicando em detalhes em uma postagem anterior.
Na prática, esse modelo é muito simples e o que vimos desde o início da pandemia é que o Re não e simplesmente uma função de reduzir o R0 a partir da diminuição no número de suscetíveis. O que vemos é que as ações governamentais e intervenções são pensadas para reduzir o Re, ou seja, reduzir o número efetivo de transmissões que está acontecendo em um dado momento, seja pela adoção de quarentenas, programas de isolamento de casos e rastreamento de contatos, diminuição do fluxo de pessoas por restrição de viagens aéreas e terrestres, proibição de aglomerações em eventos ou escolas, adoção de medidas de higiene pessoal e uso de máscaras. Tudo isso reduz as transmissçoes e diminui a velocidade com que a pandemia cresce, “achatando a curva”, que sempre foi a principal preocupação dos gestores dos sistemas de saúde. Além disso, a própria estimativa e percepção do R0 como uma média de transmissões pode ser enviesada porque sabemos hoje que a maior parte dos novos casos é gerada por alguns poucos "superdispersores" (superspreaders). Isso gera, por um lado, mais incerteza nos modelos e análises pela maior variância nas dinâmicas, mas por outro sugere que estratégias mais agressivas de rastreamento de contatos e proibição de aglomerações podem ser mais eficientes no combate à pandemia do que pensávamos.
Em geral, a dinâmica da pandemia ao longo de 2020 foi determinada pelo equilíbrio entre o Re efetivo sob essas medidas de intervenção e o número de suscetíveis reduzindo ao longo do tempo. Generalizando, vimos logo no início do ano, em fevereiro e março, a pandemia crescendo com alta velocidade (o R0 estimado estaria entre 2 e 3), mas como o número de casos ainda era pequeno, o problema ficou sob controle inicialmente. Mais importante, a partir da experiência internacional e do que estávamos vendo na China e na Europa, rapidamente medidas de quarentena e controle foram implementadas logo no início e levaram os valores de Re para algo próximo a 1,0, ou pouco maior, na maioria dos lugares.
A partir de março, a pandemia continuou a crescer, mas de forma relativamente lenta, alcançando um pico relativamente “suave”, mas alto (alguns usam o termo “platô”), entre junho e agosto a depender da região do país, e depois começou a decrescer (vejam na webpage do Observatório COVID19BR as diferentes curvas de R efetivo e de número de hospitalizados e casos graves nos Estados e nas principais cidades do Brasi). Essa seria em geral a dinâmica da primeira onda, e todos acharam que o problema estaria resolvido até o início de 2021. Mesmo com as medidas governamentais controlando, mesmo que parcialmente, o Re, chegamos ao final de 2020 com mais de 200 mil mortos (oficialmente chegamos a esse número registrado de 200 mil mortos em 7 de janeiro, mas de fato considerando os atrasos de notificação ele foi alcançado bem antes...). Isso porque inclusive, em muitos lugares, realmente o Re nunca foi realmente baixo e suficiente para praticamente encerrar a epidemia. Claro, existem diferenças quando se comparam os Estados e as cidades, pois em função de padrões geográficos e ligações entre as cidades a pandemia chegou a esses lugares em momentos um pouco diferentes, e se formos avaliar casos graves e óbitos é preciso levar em consideração a distribuição etária da população e a infraestrutura de saúde disponível.
Entretanto, ainda dentro da mesma dinâmica, à medida que o final do ano de 2020 foi se aproximando, tivemos primeiro as eleições municipais e toda a campanha eleitoral, com o aumento inevitável de aglomerações, comíssios e festas e, em seguida, as comemorações de final de ano... Tudo isso associado a uma pressão contínua do setor “produtivo” e empresarial clamando por uma “retomada responsável” das atividades dos trabalhadores (independente das condições...). Mesmo com "responsabilidade", tudo isso gerou um aumento nas transmissões que começou a ser detectado, nas diferentes regiões do país, em novembro e dezembro. Os pesquisadores alertaram para o problema e projetaram um grande número de novos casos e óbitos no início de 2021, que é o que estamos então vendo agora...Vejam por exemplo o alerta geral dado pela FIOCRUZ em dezembro e, mais especificamente, a nossa nota técnica número 10 para o Estado de Goiás.
Entretanto, no final do ano começaram a aparecer outros fatores importantes que podem tornar a avaliação dessas trajetórias bem mais complexa, que tentei sintetizar no esquema da figura abaixo. Nessa figura, as setas vermelhas indicam fatores que aumentam o Re a partir de um valor em um tempo qualquer (a linha vertical tracejada), enquanto as setas verdas indicam fatores que potencialmente reduzem esse Re. Por um lado, além do aumento nas transmissões efetivas causado pela diminuição do distanciamento social, agravada pela falta de ação dos órgãos governamentais (especialmente na esfera federal) no final de 2020, temos a evolução de novas variantes com mutações especialmente nos genes responsáveis pela proteína Spyke e que têm implicações epidemiológicas, em termos de aumento no potencial de transmissão (aumentando o R0) e talvez a letalidade, bem como possibilidade de reinfecção (vejam a postagem recente aqui no blog sobre essa tema). Esses fatores aumentam o Re mas, por outro lado, tivemos o início da vacinação a partir de janeiro / fevereiro que, em teoria, deve diminuir gradualmente o número de suscetíveis e assim diminuir o Re. Mas, para além desses fatores principais que aumentam ou diminuem o número de transmissões, temos os efeitos combinados entre eles que podem somar ou multiplicar o aumento nas transmissões (tecnicamente em alguns casos poderíamos falar de “interações” entre esses fatores). Assim, a dinâmica se torna muito complexa e é diicil avaliar de forma integral os novos equilíbrios que podem surgir, indicando crescimento, estabilização ou mesmo diminuição da pandemia nos diferentes locais.
O primeiro "novo equilíbrio" em que precisamos pensar refere-se às novas variantes, que discutimos em detalhes em uma postagem anterior (mas agora, menos de 1 mês depois, já temos muito mais informações sobre elas...). Mas por que então se preocupar com as novas variantes? O que mudou? Em primeiro lugar, na maior parte dos lugares do mundo e do Brasil ainda temos uma proporção relativamente pequena de pessoas que já contraíram o vírus e que estariam imunizadas. Assim, estamos continuamente insistindo que, se o isolamento social for abandonado, ainda “há espaço” para uma nova onda da pandemia. Entretanto, a coisa se complica porque as novas linhagens que possuem a mutação N501Y, por exemplo, são mais transmissíveis, entre 30% e 50% talvez, de modo que com um Re mais alto (assumindo o comportamento constante da população e sociedade) o número de pessoas requerido em termos de imunidade coletiva seria mais elevado. Além disso, temos outro complicador, já que o número de reinfecções causado por outra mutação nos genes da Spyke, a E484K, parece ser maior...A linhagem P1 detectada pela primeira vez em Manaus tem as duas mutações, a N501Y e a E484K! Então, a ideia do equilíbrio original em função da imunidade natural (a diminuição do número de suscetíveis à medida que a pandemia avançou) fica comprometida e vimos, de fato, uma forte segunda onda em Manaus a despeito de trabalhos anteriores terem sugerido uma alta proporção da população já infectada (ou seja, o número de suscetíveis seria muito baixo e a cidade já deveria ter atingido a imunidade coletiva). Mas ainda não sabemos exatamente qual a frequência de reinfecções, honestamente é dificílimo estimar isso populacionalmente, mas o fato é que se temos agora mais relatos de reinfecções, elas ficaram mais evidentes, de modo que o número de suscetíveis não declinaria tão rápido...
Além disso, por uma infeliz coincidência, as novas variantes evoluíram ou chegaram no Brasil justamente no momento em que as pessoas já estavam diminuindo seu nível de distanciamento social...Começamos a ver uma série de agregações por causa das eleições primeiro, e depois por causa das festas do final do ano, como coloquei acima...Não deixa de ser verdade que todos estão cansados do isolamento e distanciamento social, mas na realidade a situação epidemiológica agora é muito pior do que estávamos quando implementamos as primeiras quarentenas em março e abril. Será que as pessoas cansaram, perderam o medo? Descrença? Estamos retomando as aulas presenciais, é isso mesmo? (aliás, essa é uma longa discussão que sintetizamos na postagem sobre a “Sindemia Brasileira”, e para uma referência rápida e muito bem embasada vejam o manifesto da ABRASCO e ANPED, dentre outras organizações, sobre esse tema complexo...). De qualquer modo, é preciso pensar no efeito de sobreposição desses fatores, pela coincidência das novas variantes também surgirem ou começarem a chegar no Brasil justamente nesse momento!
Mas, pensando no lado mais “positivo” dos novos equilíbrios, temos as vacinas que podem contrabalancear esses efeitos de aumento no Re. Nos últimos meses recebemos uma enorme quantidade de informação (e de desinformação, infelizmente...) sobre as vacinas disponíveis, e nomes como PFIZER, OXFORD ASTRAZENICA (a vacina, não só a Universidade...) e CORONAVAC passaram a fazer parte do nosso dia a dia...Passou a haver uma discussão em torno de “eficácia” ou "eficiência" das vacinas, algo que a maioria das pessoas tem realmente dificuldade de entender (pois realmente não é algo tão simples). Mas, como é típico nesses tempos de “pós-verdade”, essas pessoas se acham no direito de opinar e decidir se vão tomar e recomendar a vacina Y ou X (estimuladas pela propagando do Governo Federal contra a vacina chinesa, ou a “Vacina do Dória”), propagamdo fake news e desinformação. De qualquer modo, o fato é que foram desenvolvidas em prazo recorde vacinas disponíveis para imunizar a população contra a COVID-19 e, por todo o conhecimento que acumulamos na Medicina ao longo dos séculos XX e XXI, sabemos que elas são a maneira mais eficiente de controlar uma epidemia! Isso porque as vacinas, novamente, reduzem rapidamente o número de suscetíveis na população e, portanto, diminuem drasticamente o Re, de modo que consegue alcançar muito mais rapidamente a imunidade coletiva. Problema resolvido, pelo menos em tese...
Só que, como esperado, nada é tão simples assim...Há uma série de fatores conflitantes em relação às vacinas, de modo que os equilíbrios se tornam ainda mais difíceis de prever e avaliar. Em primeiro lugar, paradoxalmente, a chegada das vacinas pode ter provocado uma "falsa sensação de segurança", no sentido das pessoas acharem o problema estava resolvido. As pessoas podem simplesmente ter assim abandonado o distanciamento social, fazendo com que o Re aumentasse na prática (e, como discutimos acima, as vacinas também chegam em um momento em que o isolamento social já estava gradualmente menor). É importante lembrar, nesse contexto, que mesmo que a primeira dose já seja suficiente para imunizar pelo menos temporariamentem as pessoas, existe um tempo mínimo de 2 ou 3 semanas para que o sistema imunológico reaja e a pessoa se torne imune. Nesse meio tempo, é quase como se a pessoa não tivesse sido vacinada, e se ela se expuser há uma grande chance de infecção.
E temos mais uma combinação importante de efeitos em relação à vacina...Chegam agora notícias de que as novas linhagens podem ser mais "resistentes" à vacina, que perdem assim um pouco a sua eficiência. Isso não é muito surpreendente já que essas mutações de maior preocupação estão na região que codifica a proteína S, que justamente era o “alvo” das vacinas e que se liga aos receptores ACE que, por sua vez, permitem a entrada do vírus nas células humanas. Claro que esse problema vai ser resolvido pelos pesquisadores e desenvolvedores das vacinas (adotando pelo menos por enquanto uma visão cientificista...), mas o problema é que o aumento do Re das novas variantes e essa possível redução de eficiência deveria requerer que uma maior proporção da população se vacine. E, como já vimos, temos toda uma campanha contra as vacinas, inclusive por parte do Governo Federal...
E aí, mesmo que as campanhas de conscientização em massa (que, aliás, não estão sendo feitas...) fossem eficientes em convencer as pessoas e contrabalancear o negacionismo, onde estão as vacinas? Em todo o mundo a vacinação avança a um ritmo um pouco mais lento do que o esperado, com raras exceções. Existe uma enorme demanda global pelas vacinas. O Brasil realmente perdeu a chance de adquirir vacinas logo no início do seu desenvolvimento por questões políticas e ideológicas. Com a necropolítica genocida do Governo federal, as coisas se complicam (aliás, quem tiver interesse veja o livro do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, bem interessante para entendermos os “bastidores” de tudo isso...). Vejam o excelente webinar no final da postagem para mais detalhes e opiniões de especialistas em vacinação e política global de saúde, incluindo minha colega Cristiana Toscana, com quem estamos trabalhando na análise de dados e modelagem da pandemia em Goiás!
Modelos e mais Modelos...
Apesar das dificuldades, podemos tentar estudar esses novos equilíbrios, mais uma vez, por meio de modelos. A ideia seria entender a dinãmica nessa segunda onda e guiar as estratégias de vacinação (vejam, por exemplo, o trabalho excelente de Kate Bubar). Nesse sentido, vou apresentar a seguir alguns resultados de um SIR populacional em tempo discreto, em que cada ponto corresponde a uma janela temporal de 5 dias (um modelo “geracional” da COVID-19, com o aumento de casos entre os intervalos seriais), determinístico, que analisa basicamente a dinâmica de casos em uma população a partir do aumento e diminuição do número de transmissões pelos vários fatores discutidos no esquema acima, em equilíbrio com o número de suscetíveis. Para facilitar a compreensão (espero...) vou numerar as figuras sequencialmente a partir daqui.
Pensando novamente na nossa cidade hipotética com 1 milhão de habitantes, vamos começar com apenas 10 casos no início de fevereiro de 2020, com um R0 que começa alto de 2,5 mas que, com a implementação das medidas de quarentena em março, cai para um valor em torno de 1,2. Esse valor de R se mantém constante a partir dai e vai decair apenas pela redução gradual do número de suscetíveis, ou seja, depois da implementação das medidas de distanciamento social a população se comporta mais ou menos da mesma forma até o final de março de 2021. Nesse modelo simples, vemos uma curva bem simétrica no número de novos casos, com um único pico com algo como 18 mil casos (i.e., 3600 infectados por dia), no início de agosto, e não vemos essa segunda onda pela qual estamos passando (Figura 1 abaixo). Na realidade, a pandemia teria se encerrado completamente ainda em dezembro de 2020.
Mas não é essa a nossa realidade, infelizmente, e precisamos então de uma dinâmica mais realista das transmissões ao longo do tempo. Podemos colocar que esse número vai gradualmente aumentando a partir de novembro (até um valor de 1,65 no início de 2021, reduzido efetivamente pelo aumento da proporção de suscetíveis). Na Figura 2 abaixo conseguimos ver então um pequeno aumento dos casos (curva laranja abaixo), quando comparado com a curva verde que expressa o modelo mais simples da Figura 1 (e como referência essa curva verde vai aparecer em todas as próximas figuras). Claro, esse crescimento aparece de forma bem mais clara se temos a chegada gradual da nova variante que aumenta o Re em 30% (como se estima como sendo o mínimo para a variante inglesa com a mutação N501Y, por exemplo), a partir de um pequeno número de casos em dezembro. Então, essa nova onda que estamos vendo seria consequência ou de um aumento bem maior do Re pela redução do isolamento (retornando a um valor quase tão alto como no início da pandemia) ou pela chegada das novas variantes que aumentaram esse Re. Na prática não é fácil distinguir entre esses cenários (ver discussão sobre isso mais abaixo).
Entretanto, essas novas variantes, além de serem mais transmissíveis, podem aumentar a proporção de reinfecção. Partindo do cenário vermelho da Figura 2 acima (com a variante sendo 30% mais infecciosa do que a anterior), podemos incorporar também taxas crescentes de possibilidade de reinfecção, com 1%, 5% ou 10% de reinfecção (ou seja, quem havia sido infectado pela variante “original” do coronavírus que existia até outubro/novembro teria essas probabilidades de se reinfectar com a nova variante). Essa maior probabilidade de reinfecção aumenta o número de suscetíveis e, portanto, vemos uma explosão de casos, chegando a uns 30000 casos por semana em março de 2021 e ainda acelerando (na Figura 3 abaixo). Isso não é muito diferente do que vimos em Portugal ou na Inglaterra, com um pico dessa nova onda bem mais elevado do que tínhamos na primeira.
Mas agora temos que pensar na possibilidade de reduzir o número de suscetíveis considerando a disponibilidade de vacinas. Será que é possível então contrabalancear esse cenário catastrófico? Usando como referência o cenário mais drástico de 10% de probabilidade de reinfecção (a curva vermelha da Figura 3 acima), vemos que o início de uma campanha de vacinação com 1000 pessoas vacinadas por dia a partir de dezembro reduziria em mais de 50% o número de novos casos, mesmo considerando uma eficiência de 70% da vacina aplicada (curva azul escuro abaixo, na Figura 4). Estamos assumindo, por simplicidade do modelo, que apenas a primeira dose da vacina aplicada já seria suficiente para imunizar as pessoas pelo menos até o final do tempo de análise, reduzindo casos graves, diminuindo a carga viral e assim a probabilidade de transmissão. Boas noticias então!
Mas e se as novas variantes reduzirem a eficiência da vacina, digamos, para 40%? Ai efetivamente voltaríamos a ter problemas e o número de casos continuaria muito alto (curva azul claro), quando comparada com a eficiência de 70% (curva azul escuro), como vemos na Figura 5 abaixo. Mas poderíamos "facilmente" (no modelo) compensar essa perda de eficiência, por exemplo, aumentando em 2 vezes o número de pessoas vacinadas (linha tracejada azul escura) e, se conseguíssemos vacinar 2000 pessoas por dia, mesmo com uma eficiência de 40% a epidemia estaria praticamente sob controle e chegado a um novo pico já bem mais baixo no final de março de 2021 (linha preta).
Vejam que se pensarmos em termos de curva de obtidos temos mais um efeito a considerar, que seria a eficiência da vacina não em relação a casos leves (ou transmissão), mas o que temos é praticamente uma redução de 100% em relação à hospitalização em UTIs e óbitos. A redução no número de óbitos depende, portanto, dos grupos prioritários que estão sendo vacinados, e aí seria preciso pensar em um IFR (a letalidade por infectado) que vai se reduzindo drasticamente a partir do momento que os idosos ou eventualmente pessoas que possam agir como “superdispersores” potenciais e pessoas com maior exposição ao vírus (pessoal da linha de frente da saúde) comecem a ficar imunizados. Para gerar curvas de óbito seria preciso pensar nesses outros parâmetros, especialmente a partir do momento em que começa a vacinação e grupos prioritários são estabelecidos. Só para fins de ilustração, vamos imaginar que o IFR da COVID-19 está em torno de 0,7%, e nesse caso vamos usar como exemplo a curva de casos com a implementação da vacina com 70% de eficácia e aplicando 1000 doses por dia (a curva pontilhada azul escura da Figura 5). Vemos que a curva de óbitos ocorrendo ao acaso na população seguiria perfeitamente a curva de casos, pois apenas multiplicamos o número de casos por 0.007 (compare a curva azul com o símbolo de estrela da Figura 6 abaixo com a curva pontilhada azul escura da Figura 5 acima). Nesse caso, a trajetória até março de 2021 acumularia pouco mais de 3200 óbitos desde o início da pandemia.
Entretanto, sabemos também que a letalidade da COVID-19 está fortemente estruturada com a idade. Por exemplo, embora a letalidade média seja de 0.7% (ou seja, menos de 1%), para pessoas com mais de 85 anos essa letalidade pode chegar a 20% ou 30%! Ou seja, 1/4 das pessoas idosas que contraírem o coronavírus tendem a falecer. Então, pensando agora que 80% das doses vão ser aplicadas prioritariamente para os pessoas mais idosas, acima de 75 anos (primeiro as com mais de 85 anos e depois as que têm entre 75 e 85 anos), podemos ir avaliando, a cada momento do tempo, qual a chance de uma pessoa idosa ser contaminada e eventualmente falecer e, ao mesmo tempo, já ter sido vacinada. Nessa situação, recalculamos o número de óbitos e, ao final, teríamos uma redução da curva gerando pouco mais de 2800 óbitos acumulados em março, como aparece na Figura 6A (painel superior) a seguir. Pode parecer pouco, mas vejam que na verdade teríamos uma rápida redução na letalidade a partir do início da campanha (Figura 6B, abaixo), com uma redução de quase 70% no final de março! Isso significa que, na prática, o sofrimento das pessoas em função da hospitalização e óbitos, bem como a pressão da COVID-19 sobre o sistema de saúde, diminuiria muito rapidamente à medida que avança a vacinação.
Coda
Desculpem o longo exercício na seção anterior, mas quis demonstrar com um modelo SIR simples os novos equilibrios que podem ser obtidos apenas alterando os equilíbrios de Re e número de suscetíveis seguindo o esquema apresentado no início da postagem. Fui seguindo gradualmente o esquema no sentido de ir mostrando uma deterioração gradual na situação (diminuindo o isolamento, introduzindo as novas linhagens mais transmissíveis e depois capazes de gerar mais reinfecções) e depois a possibilidade de controle por aplicação das vacinas. Mas na realidade podem existir diversas combinações desses fatores, com intensidades e tempos diferentes para várias cidades ou lugares, e podendo assumir, claro, parâmetros variáveis (por exemplo, o aumento do nível de transmissão das novas variantes poderia variar entre 30% e 50%). Outro exemplo, os níveis de isolamento e distanciamento social começam a aumentar com o aumento das hospitalizações e saturação no sistema de saúde, pois os Governos (em geral) reagem a essa pressão e adotam ou reeditam medidas de controle.
Na prática, é difícil também "parametrizar" um modelo com esse nível de complexidade porque não sabemos muitas coisas, novamente... Mais interessante, se olharmos apenas o número de casos nas figuras acima no final de março, vamos ver que diferentes combinações de fatores levam a uma mesma trajetória. Ou seja, existem diferentes explicações possíveis para as trajetórias que estamos vendo agora. Por exemplo, será que essa nova onda, em diferentes lugares, é função simplesmente do aumento do contato entre as pessoas e de mais aglomerações? Ou precisamos então pensar que as novas variantes mais transmissíveis já estão circulando há algum tempo sem que percebêssemos? Essas variantes são apenas mais transmissíveis (não 30%, mas talvez 50% ou 60% a mais?) ou temos realmente muito mais reinfecções? Para distinguir entre esses fatores precisamos, portanto, de mais evidência de fontes “independentes”, ou pelo menos parcialmente independentes, do crescimento em termos de número de casos ou hospitalizações. Por exemplo, podemos monitorar o aumento da frequência das novas variantes com um programa de “vigilância genômica”, embora isso seja realmente muito caro. Talvez estudos de reinfecção caso a caso, ou em “coortes”, permitam estimar a probabilidade disso acontecer. Podemos usar a mesma estratégia de amostragem ou mesmo estudos in vitro para avaliar a resistência das diferentes variantes às vacinas, em termos de redução de sua eficácia (para poder, se for o caso, aumentar a adesão à vacinação e o número de doses).
Podemos usar modelos bem mais complexos para entender os cenários e avaliar as possibilidades de intervenção e priorização de vacinas em estudos de caso reais e, de fato, modelos desse tipo têm sido feitos. Corroborando o que vemos acima, a combinação de reforço das medidas de contenção e ampliação da vacinação já começa claramente a reduzir o número de casos nos Estados Unidos, Inglaterra e Israel. Alguns otimistas, como o Dr. Marty Makary, professor na Universidade John Hopkins, dizem que a pandemia pode acabar em abril (mas em um artigo no Wall Street Journal...). Talvez ele esteja influenciado pelas boas notícias na Inglaterra e nos Estados Unidos, talvez não conheça ou esteja a par da dura realidade de países “em desenvolvimento” (sempre “adorei” esse termo politicamente correto para país subdesenvolvido...) e/ou locais dominados pela ignorância, como é o nosso caso. Não sei o que é pior, na verdade, mas pelo menos depois de Trump não precisamos assumir uma correlação perfeita entre subdesenvolvimento e ignorância (...mas isso é outro tema). De qualquer modo, espero que Makary esteja certo, mas tenho lá minhas dúvidas...
Por outro lado, no Brasil, o nosso problema é bem mais básico...Na verdade, por enquanto, temos uma combinação explosiva de todos os fatores que fazem com que o Re tenda a aumentar... Temos um Governo Federal que desmotiva a população a aderir à vacinação e apoia o "tratamento precoce", contra todas as evidências científicas, e continua tratando a pandemia sempre de forma desleixada e incompetente (vejam o excelente webinar abaixo, muito "interessante" em termos de entender a situação atual e as perspectivas). Se não fossem as ações mais contundentes de alguns dos Governos Estaduais e Municipais, a situação estaria totalmente fora de controle e ainda estaríamos discutindo quais vacinas pensaríamos em comprar...Mas mesmo assim não temos vacinas suficientes para uma campanha em grande escala e continuada, sustentada, apesar de termos a infraestrutura básica do SUS e a “expertise” do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que certamente é um dos melhores do mundo.
De qualquer modo, vamos continuar tentando entender o que está acontecendo e propondo a melhor maneira de mitigar os efeitos da pandemia. É o que dá para fazer...
Comments