Rejane Santos-Silva
Tábata Elise Ferreira Cordeiro
Juliana Hipólito
Caroline Birrer
Uma comunidade científica além da cisgeneridade: rumo a uma academia verdadeiramente inclusiva
Discussões sobre inclusão, equidade e diversidade na ciência se intensificaram durante a crise agravada pela pandemia de COVID-19. Grupos subrepresentados e/ou desfavorecidos em consequência do gênero, orientação sexual, étnico/racial e/ou portadores de necessidades especiais estão sofrendo desproporcionalmente os impactos da crise. O cenário é preocupante e compromete seriamente a permanência e a estabilidade na carreira científica desses grupos. Reduzir esses impactos, a curto e longo prazo, requer um esforço coletivo de toda a comunidade científica, especialmente das lideranças científicas, para a retenção da diversidade na academia durante a pandemia.
Avançando um pouco mais essa discussão, recentemente participamos das discussões que resultaram em uma carta publicada na revista Science, intitulada Supporting transgender scientists post–COVID-19 (“Apoie cientistas transgêneros pós-COVID-19”), chamando atenção para os obstáculos que as pessoas transgêneras enfrentam na sociedade e na comunidade científica, e sugerindo caminhos para a construção de um futuro para cientistas trans pós-pandemia. A construção de espaços mais saudáveis, acolhendo e respeitando as diferenças deve ser compromisso de todes. Cientistas transgêneres devem participar ativamente dessas conversas para garantir que suas necessidades sejam reconhecidas à medida que nos esforçamos para tornar a ciência mais inclusiva e diversa.
Esta carta é produto de uma discussão promovida pela Rede Kunhã Asé de Mulheres na Ciência durante a quarentena. A Rede Kunhã Asé surgiu na Universidade Federal da Bahia (UFBA) no final de 2019 e, atualmente, conta com mulheres cisgêneras, mulheres e homens transgêneres de diferentes instituições do Brasil e do mundo. A Kunhã Asé tem o objetivo promover a diversidade na ciência fornecendo apoio emocional e intelectual para mulheres cientistas e fomentando o ingresso de meninas e mulheres na ciência, guiada pela perspectiva da sobreposição ou cruzamento de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação. Devido à pandemia, parte das nossas atividades foram redirecionadas para as redes sociais, no perfil @kunhaase no Instagram. Entre maio e julho de 2020, o quadro “Coisa de Mulher” discutiu o acesso e permanência nas universidades; conhecimento e acesso à diversidade; maternidade e ciência e; experiências de mulheres posições de liderança. Os encontros virtuais abordaram também questões além fronteiras da universidade, como: o enfrentamento das mulheres negras e indígenas diante o COVID-19. Em junho, a live “Pessoas trans na ciência: uma relação dialética”, contou com uma conversa entre Murilo Medeiros (homem trans, biólogo, mestrando do PPG em Ecologia: Teoria, Aplicação e Valores, na UFBA) e Lucy Souza (mulher trans, bióloga, pesquisadora do Museu da Amazônia e divulgadora científica no canal do Youtube “Make Science BR”). Esse espaço virtual foi palco para discussões sobre as experiências de pessoas trans na sociedade e na ciência, reforçando a necessidade de estender a discussão para todos os espaços, incluindo os acadêmicos. A discussão proporcionada neste encontro resultou em uma carta na revista científica mais prestigiada do mundo.
Pessoas trans enfrentam obstáculos impostos tanto pela sociedade em geral, quanto pela comunidade acadêmica, em todas as etapas da carreira. Durante toda a formação educacional, a exposição da ciência a partir de uma perspectiva cisgênera, onde sexo biológico e gênero são sinônimos e binários, colabora para argumentos distorcidos e equivocados, de que tudo que não se encaixa na perspectiva cis não é natural ou essencial, contribuindo para barreiras na vida pessoal e social. Essa narrativa favorece argumentos científicos e religiosos frequentemente usados para atacar, invalidar e apagar a existência trans. Bullying, falta de apoio da família, dificuldade de acesso à saúde e a negação estrutural de gêneros “não padronizados” conduz a taxas elevadas de abandono escolar e suicídio. Estima-se que 82% das pessoas trans entre 14 e 18 anos são excluídas do sistema educacional. Crimes de ódio e leis discriminatórias geralmente têm como alvo pessoas trans e, lamentavelmente, o Brasil lidera o posto do país que mais mata pessoas trans no mundo. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 89 pessoas trans foram assassinadas no primeiro semestre de 2020. Número subestimado devido a enorme dificuldade de contabilizar esses crimes. A alta vulnerabilidade à morte violenta e prematura contribui para a baixa expectativa de vida do grupo, de aproximadamente 35 anos, e não alcança 30 anos para a população trans negra, contrapondo a expectativa de vida geral do país é 75 anos. A incompreensão também domina o sistema de saúde, que dispõe de uma Classificação Internacional de Doenças (CID) para pessoas trans, limitando seus direitos básicos. Os cuidados de saúde comumente negados provavelmente serão ainda mais agravados com os sistemas de saúde sobrecarregados devido a pandemia de COVID-19. A sistemática exclusão de pessoas trans dos espaços sociais torna ainda mais desafiador o alcance aos espaços científicos.
Nos ambientes universitários e profissionais outros obstáculos se estabelecem. Problemas de assédio e saúde mental costumam ser mais elevados quando comparados aos colegas cisgêneres. Assédio, intimidação ou comportamentos de exclusão no ambiente de trabalho desestimulam pessoas trans a seguir na ciência. Numa pesquisa ampla, Teresa Evans e colaboradores (2018) revelam que estudantes de graduação e pós-graduandos trans estão mais propensos à ansiedade e depressão, quando comparados aos grupos cis. A prevalência de ansiedade e depressão em estudantes de pós-graduação transgêneros foi de 55%, em comparação com suas contrapartes cisgêneras (43% e 41% em mulheres e 34% e 35% em homens, respectivamente). Pessoas trans também são frequentemente colocadas em desvantagem pelo viés nas decisões de contratações. Por terem menos oportunidades às carreiras estabelecidas, pessoas trans estão vulneráveis aos cortes de financiamento e ao desemprego decorrentes da pandemia. Apesar das profunda desigualdade, políticas afirmativas raramente incluem trans como uma identidade minoritária, refletindo o descaso do governo às opressões experimentadas pelo grupo.
A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) aponta que, das 63 universidades federais, apenas 12 possuem sistema de cotas para trans. Entre os estudantes matriculados em universidades federais, apenas 0,2% são trans. Recentemente, a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) foi a primeira a implementar a política de cotas para trans na graduação. Em 2018, a UFBA ampliou o sistema de cotas para pessoas trans na graduação e pós-graduação, com o objetivo de permitir maior o acesso da população ao ensino superior. Atualmente, há 44 estudantes matriculados em 16 cursos de graduação. Apesar da conquista na inclusão de pessoas trans no ensino superior, é urgente incorporar políticas que garantam a permanência do grupo nestes ambientes. Combinado com preconceitos nas decisões de contratação, é provável que os cientistas transgêneros sejam sobrecarregados com uma parcela desproporcional da pobreza, doença e exclusão da ciência causada pelo COVID-19.
Este momento apresentado pela pandemia de COVID-19, é uma oportunidade única, urgente e necessária para construir um caminho mais amplo para acolher todas as identidades de gênero. Nesta carta, trazemos recomendações para construir um futuro pós-pandemia mais diverso e inclusivo para as diferentes identidades de gênero. Precisamos interceder, investir e desconstruir ideias para garantir a inclusão e permanência de pessoas trans nos ambientes científicos. Nossas recomendações publicadas na Science incluem: 1) respeitar os nomes e pronomes com os quais as pessoas transgêneras se identificam; 2) se impor individualmente e institucionalmente contra políticas e leis transfóbicas e; 3) desafiar as perspectivas na cultura científica que apagam as experiências transgêneras. Além disso, é fundamental que as instituições contribuam englobando o desenvolvimento de políticas inclusivas de mudanças de nomes; considerando as necessidades de pessoas transgêneras na tomada de decisão; alocando financiamento para apoiar suas carreiras e; fornecendo assistência médica para estes cientistas. Muito se discute sobre o “novo normal” que deve emergir no cenário pós-pandemia, porém já constatamos que muitas relações construídas até o momento precisam ser profundamente reavaliadas e desconstruídas. Exigimos uma sociedade justa e livre de quaisquer discriminações. Uma sociedade onde a equidade seja real, plena e que iniciativas e espaços como a Rede Kunhã Asé não sejam mais necessários, pois já teremos superado quaisquer desigualdades. Essa mudança será alcançada quando entendermos que a diversidade é essencial à vida e as diferenças devem ser respeitadas. Para alcançar esse ideal, é imprescindível mobilização e esforço coletivo para construção de uma nova sociedade e de uma nova ciência distante de construções e argumentos cis-normativos.
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