Certamente as pessoas mais esclarecidas passaram a ter uma posição mais crítica e questionadora sobre muitos assuntos importantes em meio à pandemia, tanto sob um ponto de vista mais “operacional” e prático, envolvendo questões científicas e técnicas para resolver o problema real que temos diante de nós, quanto em termos mais abstratos, filosóficos e, por que não dizer, existenciais.
Em um primeiro momento, existe uma discussão sobre a manutenção das atividades durante a pandemia e toda a discussão sobre a economia versus saúde que, como já discutimos aqui diversas vezes nas muitas postagens sobre a COVID-19, é um “falso dilema”. Sem dúvida, tanto de forma individual quanto coletiva, temos que achar um equilíbrio entre a proteção pelo isolamento (enquanto não temos uma solução mais efetiva e definitiva para o problema) e manter o nosso dia a dia. “Vida que segue”, como dizem alguns... Certo, mas claro que há uma série de dificuldades para tocar a vida, de ordem prática e emocional. Entendo que essas dificuldades de ordem emocional têm origem na falta de contato social e sentimos com isso, como seres sociais que somos, aumentando nitidamente os quadros de ansiedade e depressão. Mas, além disso, passamos a perceber uma série de outros problemas e a pandemia, na realidade, amplificou componentes nefastos da nossa sociedade que criam, ou vão criar, problemas muito maiores. Assim, com essa reflexão torna-se cada vez mais difícil seguir em frente e encontrar sentido para muitas coisas. Vou ilustrar isso com uma discussão importante que está acontecendo agora na área científica no país, relacionado à avaliação dos Programas de Pós-Graduação (PPGs) e o envio dos dados pela Plataforma SUCUPIRA. Desde já desculpem o pessimismo...
Essas últimas semanas vimos vários movimentos dos coordenadores de pós-graduação solicitando o adiamento do envio do relatório SUCUPIRA da CAPES e da própria avaliação quadrienal, e que já contava, alguns dias atrás, com quase 3000 assinaturas. Já discuti a plataforma SUCUPIRA em uma postagem de fevereiro de 2020, ainda em um contexto um pouco diferente do atual. Naquele momento, tentei mostrar a lógica do preenchimento e importância de valorizar o Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) como parte fundamental da pesquisa científica e tecnológica no Brasil. Mas mesmo assim havia chamado atenção para os problemas que já existiam já à época, e escrevi
“...Em segundo lugar, quero chamar atenção para o fato de que, paradoxalmente, estamos fazendo tudo isso justo em um momento em que o Sistema Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação do Brasil está sendo duramente atingido tanto por sérios cortes de verba quanto por perseguições ideológicas e políticas em uma ampla campanha de desmoralização das Universidades públicas pelo Governo Federal. Alguns dizem que o sistema está sendo “desmontado”
E, mais ao final,
“Então, a grande questão com a qual me deparo hoje, ao preencher a SUCUPIRA, é a seguinte: faz sentido tudo isso?”
Hoje, mais de um ano depois, a questão permanece: faz sentido tudo isso? Na verdade, a questão se tornou ainda mais séria e agora temos o último relatório do quadriênio, que deve sintetizar em muitos aspectos o que aconteceu nos últimos 4 anos e que servirá de base para a avaliação dos programas. E temos, claro, a pandemia...A argumentação para mais um adiamento do envio, na carta enviada à presidência da CAPES, se baseia justamente em alguns pontos importantes relativos à pandemia, que estão sintetizados nos folders circulando na internet e nos grupos de WhatsApp
Entendo perfeitamente esse tipo de manifestação, bem como outras iniciadas há algumas semanas atrás, quando circularam mensagens de alguns dos coordenadores das 49 áreas da CAPES, principalmente das áreas da saúde, solicitando um adiamento da avaliação em si (e vi pelo menos uma manifestação mais oficial dos coordenadores da área de Saúde Coletiva nesse sentido). A avaliação quadrienal é um grande evento, com a mobilização de milhares de pesquisadores e docentes, técnicos e gestores da CAPES que se reúnem em Brasília durante mais de um mês, para discutir os critérios e analisar os dados que irão determinar as notas de cada programa pelos próximos 4 anos. Claro, em meio a pandemia, a ideia é que em 2021 isso deve ocorrer de forma remota, o que por si já trás uma série de desafios.
Assim, claro que o envio do SUCUPIRA, especialmente o do último ano da avaliação, é um momento crítico para os PPGs. A avaliação da CAPES, construída ao longo das últimas décadas, é sempre considerada de forma ambígua pelos coordenadores, docentes e discentes em todo o Brasil. Por um lado, há sempre um desconforto de vários por receberem conceitos inferiores aos esperados, comparações inevitáveis entre PPGs dentro de uma mesma área, comparações equivocadas entre PPGs de áreas diferentes dentro de uma mesma instituição etc. Mas, de modo geral e olhando em retrospectiva, sempre entendi que o processo foi muito importante para consolidar a pesquisa no Brasil por meio de uma retroalimentação positiva, colocando o país em uma posição de destaque internacional nos últimos anos. Mas, e agora? Voltando à questão básica, faz sentido tudo isso?
Como parte de todo esse processo que acontecerá (ou aconteceria?) em 2021, e motivado inclusive pelas novas diretrizes de autoavaliação e planejamento estratégico, houve também nos últimos meses uma grande movimentação em torno do relatório SUCUPIRA (aliás, nesse momento de tanta incerteza em tantos aspectos, falar em planejamento estratégico chega a ser, para dizer o mínimo, desconcertante...). Tivemos infindáveis reuniões em muitas das Pró-Reitorias de Pesquisa e Pós-Graduação para discutir a avaliação e orientar os coordenadores no preenchimento dos dados, reuniões dos docentes e discentes dos cursos, muitas delas com a presença de pesquisadores externos convidados para fazer parte do processo de autoavaliação. Isso sem contar o usual estresse dos coordenadores e das secretarias, bem como as incertezas no preenchimento e coleta dos dados para colocação no SUCUPIRA “em si”. Isso tudo acontecendo no meio da pandemia, em especial após o início da 2ª. onda em dezembro/janeiro, e por isso envolvendo, claro, reuniões remotas que, já sabemos, são mais cansativas do que pareciam no início.
E agora, no meio de toda essa confusão e desconforto físico e emocional, as incertezas aumentam com as notícias da demissão repentina do Presidente da CAPES, Prof. Benedito Aguiar. Quem acompanha o “Ciência, Universidade e Outras Ideias” sabe da minha “inquietação” com a nomeação de um defensor do criacionismo e “design inteligente” para a presidência da principal agência de fomento e avaliação da formação de professores no Brasil, que manifestei publicamente em vários momentos. Mas no Governo atual isso não foi realmente inesperado e faz parte de um contexto maior de desmonte do sistema nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil, associado a uma enorme e crescente desvalorização da Educação como um todo (além de todos os outros problemas que acompanhamos todos os dias). Mas, mesmo com esses problemas, é forçoso reconhecer que é um péssimo momento para qualquer mudança na CAPES, especialmente considerando que essa mudança não deve ter um motivo genuíno e não deve ser motivada por um interesse do Governo em melhorar a CAPES, pelo que temos visto (ou melhor, pelo que NÃO TEM ACONTECIDO) no MEC nos últimos meses e anos. Preocupante...
Então, diante de tudo isso, na verdade o problema com o SUCUPIRA é bem mais sério do que possa parecer, é só a ponta do iceberg. Tenho trabalhado gradualmente no relatório SUCUPIRA do nosso PPG em Ecologia & Evolução da UFG, do qual sou coordenador, desde novembro ou dezembro do ano passado, e estava pronto para enviá-lo no primeiro prazo, que seria em final de março (na realidade no dia 23/03, pois o relatório é enviado eletronicamente primeiro para as Pró-Reitorias de Pesquisa e Pós-Graduação, que chancelam e o enviam para a CAPES). Tenho familiaridade com o sistema de avaliação e com a plataforma, por isso pode ser um pouco mais fácil para mim, mas claro que há muitos colegas que estão preenchendo pela primeira vez, assumiram a coordenação há pouco tempo e estão ainda confusos com toda a complexidade da avaliação e das métricas. Houve uma grande mudança recente (no final de 2019, para este último relatório) no componente do “Proposta do Programa”, a parte escrita no qual descrevemos de forma mais subjetiva tudo o que aconteceu no programa, que exigiu praticamente reescrever todo o item e deu bem mais trabalho do que imaginei. Estamos falando de um texto com 70 páginas ou mais...Mas isso faz parte do processo usual que acontece todos os anos, há muitos anos. Então, podemos adicionar mais uma pergunta complementar aqui, comparando com a do ano passado, o que mudou? Obviamente estamos no meio da pandemia, mas os prazos já foram prorrogados um pouco (e isso acontece todos os anos, se não me falha a memória). Então, ainda assim é forçoso perguntar novamente: o que mudou?
Eu mesmo preenchi o SUCUPIRA esse ano até como uma forma de “fuga” da realidade, uma maneira de me concentrar em outra coisa que não fosse acompanhar e modelar o avanço da 2ª. onda da COVID e o número de mortes aumentando ao nosso redor (sei que é um problema particular meu, mas há vários colegas coordenadores em situação semelhante). Como coloquei anteriormente, acho interessante preencher o relatório, especialmente esse último, justamente porque vemos o resultado do trabalho nos últimos anos. Alguns sempre me consideraram masoquista por isso, mas é verdade: sempre achei legal preencher o SUCUPIRA desde que assumi uma coordenação de um PPG pela primeira vez, no longínquo ano de 1996! E, até por isso, os colegas mais novos não percebem o quanto o SUCUPIRA é bom comparado com o sistema “Coleta” que existia antes...1996, uma eternidade! Mas agora, no início de 2021, fico pensando a que ponto cheguei...Usar o SUCUPIRA para esquecer alguma coisa, muitos diriam, é com certeza algo que faz parte dessa nossa nova “surrealidade”...!
De qualquer modo, consciente da fuga, essa dualidade de pensamento às vezes se manifestava e eu me sentia totalmente no “mundo de Alice”. Preenchendo o relatório e coletando os dados, me via pensando, tentando racionalizar, que isso é o que precisamos fazer para continuar existindo, que o melhor que podemos fazer nesse momento terrível é mostrar para a sociedade o que fizemos nesses quatro anos, todos os alunos que formamos, as dezenas de mestres e doutores que agora estão prontos para atuar no ensino, na pesquisa e resolver os problemas da sociedade (no nosso caso na área ambiental e em conservação da biodiversidade, por exemplo). Todos os trabalhos que publicamos em bons periódicos científicos de alto impacto e vemos nossos esforços serem reconhecidos internacionalmente. Em muitos casos, há impactos tecnológicos e inovações importantes que emergem desse esforço, já que no Brasil a maior parte desses desenvolvimentos ocorrem nas Universidades públicas e, dentro destas, nos PPGs. Isso foi de fato o que escrevi há um ano atrás
“Para encontrar ânimo, vou tentar focar nos "valores e princípios" que discutimos acima e usar o relatório para lembrar dos bons momentos e refletir sobre as perspectivas. Quero crer que que, apesar de tudo que aconteceu de ruim no Brasil em 2019, conseguimos fazer nosso trabalho, estamos colocando o Brasil já há alguns anos em uma posição de destaque em nível internacional, formando jovens cientistas e pesquisadores de alto nível e, espero, cidadãos conscientes do seu papel na sociedade.”
Tudo bem, o mote é o mesmo, mas as incertezas e dúvidas aumentaram. E, nesse momento, será que podemos ainda pensar que o SUCUPIRA mostra alguma coisa para a sociedade? De que sociedade estamos falando? Quem sabe o que está sendo informado no SUCUPIRA é um grupo muito seleto de talvez alguns poucos milhares de pesquisadores e alunos mais envolvidos com o SNPG e com a política científica no Brasil em suas áreas de trabalho específicas. Na realidade, como temos dito aqui várias vezes, uma parte considerável da sociedade não valoriza a Ciência e a Educação e, de certo modo, por isso estamos nessa situação no Brasil no início do século XXI. Estamos formando jovens doutores que, por sua vez, encontram-se cada vez mais sem perspectivas e sem estímulo. Acabou-se o tempo em que havia alguma perspectiva clara para os melhores doutorandos, aqueles mais destacados, que certamente conseguiriam colocações mesmo em um sistema pequeno e com poucas vagas. Antes do REUNI do Governo Federal que expandiu o sistema federal de ensino superior e de pesquisa, a partir de 2007-2008, essa era a realidade. Mas havia diretrizes claras e, mesmo com dificuldades, todos acreditávamos (sim, essa é a palavra...), com base indutiva pelo menos, que se as pessoas trabalhassem duramente e se destacassem havia uma boa perspectiva de conseguir um emprego e continuar trabalhando em ciência e tecnologia.
Os tempos agora são outros. Há muita incerteza e problemas em uma escala muito maior no país e na sociedade que tendem a frustrar as expectativas e tornar muito mais difícil, para nós, sustentar para os nossos alunos a ideia de que os mais bem qualificados irão conseguir boas posições. Não há posições, tanto porque a economia do país colapsou e o Governo não vai investir tão cedo no sistema de ensino superior quanto porque a própria sociedade está dividida e dominada por movimentos anti-educação e anti-ciência. Estamos jogando fora todo o investimento feito nesses jovens ao longo de 6 anos ou mais! Aqueles mais empreendedores e com mais possibilidades tentam conseguir posições fora do Brasil, na famosa “fuga de cérebros”, que nunca foi tão séria quanto agora.
Então, voltando ao começo da postagem, em relação à questão das diferentes origens dos problemas emocionais: vamos supor que, hipoteticamente, houvesse a chegada repentina de uma enorme quantidade de vacinas e o problema da pandemia fosse rapidamente resolvido. Poderíamos assim voltar a uma normalidade absoluta em poucas semanas. Mesmo assim, entendo que as questões apresentadas acima ainda se mantêm, em resumo, será que ainda assim faria sentido enviar o SUCUPIRA? Ainda assim a avaliação Quadrienal faria sentido? Vejam, a questão não é se devemos ou não enviar, e sim, de fato, se faz sentido gastar tempo com tudo isso. O que está cada vez mais claro pra mim é que há um mal maior que precisamos combater e questões mais prementes que precisam ser resolvidas em nossa sociedade que, na minha opinião, antecedem tudo isso! Claro que precisamos tentar manter, em meio ao caos, as estruturas construídas a duras penas há tanto tempo, e isso requer um grande esforço! Há um dilema sério aí também, pois sabemos que há muito existem interesses obscuros (ou nem tão obscuros...) em desmontar a avaliação para favorecer certos setores e instituições...Mas ao mesmo tempo não devemos ser ingênuos. Temos que ter empatia e compreender o momento atual, não tomando decisões "acima do bem e do mal" e que façam com que o impacto sobre essas estruturas seja ainda maior do que estamos vivenciando.
Prof. José Alexandre, o texto é bastante interessante, trazendo à tona essa questão sobre se vale a pena que estamos fazendo, que acredito seja comum entre muitos. Deixamos tudo e todos de lado (família, filhos pequenos, orientandos) para nos concentrarmos em preencher um relatório que parece infindável. Como bem exposto, são uns poucos que terão acesso aos tantos dados e resultados que procuramos evidenciar. E a sociedade vai ficar sabendo disso tudo? Creio que há um sentimento comum de que precisamos mudar os rumos. Qual o nosso papel enquanto pós-graduação em um país no qual as desigualdades em termos de ensino de base estão se alargando cada vez mais? Nossa educação vem se deteriorando há algum tempo e agora d…
Prof. José Alexandre, seu texto é muito lúcido e traduz pensamentos e sentimentos que me invade como pesquisadora preocupada em transformar a sociedade de fato. A comunidade não conhece a UFG como eu gostaria. Sinto falta de ir à população e mostrar o que fazemos na UFG, de uma forma orquestrada e em sintonia com outros projetos da universidade. Há que se definir projetos estratégicos que façam sentido à população e que resolvam dores de coletividades de uma forma integrada e resolutiva. Hoje fala-se em ciência de implementação, porque demora-se cerca de 17 anos para que um conhecimento produzido em pesquisas impacte a sociedade (o “know-do” gap). Cada um de nós, pesquisadores, usa seus projetos para apagar fogos (centelhas) d…