Já discutimos aqui no “Ciência, Universidade e Outras Ideias” diversas vezes a questão do quanto as questões sociais e o “background” cultural afetam a dinâmica da Ciência, em diferentes níveis (leiam aqui uma discussão geral recente no contexto da epistemologia feminista). Mas não vamos entrar nas questões epistemológicas mais complexas e profundas, nas quais a própria concepção teórica é “gerada” a partir dessas questões sociais e culturais. Vamos pensar em um nível mais básico de interação entre os pesquisadores e a sociedade e nos perguntar inicialmente como cientistas escolhem os temas que ele ou ela vão pesquisar?
Em princípio, podemos dizer que a Ciência surge a partir das ideias e da criatividade dos pesquisadores em um nível individual e em pequenos grupos de pesquisa. Partindo da curiosidade, a ideia é entender a natureza ou a sociedade, e assim novas teorias são propostas, discutidas e avaliadas a partir de novos dados. Com isso, a Ciência avança, tanto em termos conceituais e filosóficos pensando em “acúmulo” de conhecimento humano, quanto em termos de aplicações tecnológicas levando à solução prática de problemas. Essa é uma visão bastante plausível, embora seja em muitos sentidos idealizada e simplificada (e até mesmo “romântica”) de todo o processo. De fato, cada vez mais vivemos em um mundo no qual a ciência, a tecnologia e a inovação guiam praticamente todos os aspectos do nosso dia a dia (ainda que muitos não percebam isso muito claramente, o que explica o avanço do negacionismo e da pseudociência...). A partir da “revolução científica” que ocorreu na Europa a partir do século XVIII, com Galileu, Newton, Descartes e tantos outros, a Ciência passou cada vez mais a fazer parte das preocupações dos países em termos de soberania e associação com o desenvolvimento econômico e social. Simbolizando essa preocupação, voltamos à fala famosa de Francis Bacon, ainda no final do século XVI, “O conhecimento é em si mesmo um poder...”. De fato, como Yuval Harari explica tão bem no excelente Sapiens, há uma associação histórica muito forte entre o início e a expansão do capitalismo, o processo de colonização do mundo pelos europeus e o avanço do conhecimento científico e tecnológico principalmente a partir do século XVIII.
Independente das questões históricas e dos processos causais que emergem delas e que se perpetuam, em muitos casos, até os nossos dias, isso nos leva a uma discussão importante sobre o direcionamento dos esforços em Ciência, Tecnologia e Inovação em um país. Nesse sentido, temos algumas ideias complementares e importantes para começar a pensar. Em primeiro lugar, à medida que o conhecimento avança e as aplicações em todas as áreas do conhecimento se tornam mais complexas em termos de compreensão e de implementação, fazer Ciência se torna cada vez mais caro, porque são necessários equipamentos sofisticados, por exemplo. Mais importante, e é preciso também organizar equipes compostas por muitas pessoas trabalhando, altamente especializadas nas tarefas que precisam desempenhar (por exemplo, lidar com equipamentos complexos ou analisar grandes bancos de dados), e assim essas pessoas precisam inclusive ser formadas durante muitos anos, em geral nos programas de graduação e pós-graduação (o que mostra uma forte associação entre educação e ciência, algo muito importante especialmente no Brasil). Então, é preciso fazer enormes investimentos financeiros, o que nos leva ao segundo ponto, que está ligado com a própria economia da sociedade. Ou seja, quem vai pagar por esse avanço do conhecimento científico e qual o “retorno” desse investimento? Quanto uma sociedade está disposta a investir em ciência e quem decide quais são as ideias mais importantes que devem ser apoiadas financeiramente? Por exemplo, que áreas do conhecimento devem ser priorizadas ou que teorias ou modelos merecem ser avaliados a fim de realmente avançar cientificamente e/ou viabilizar aplicações práticas e desenvolvimento social e tecnológico?
Assim, embora em tese a escolha dos temas de pesquisa possa partir da curiosidade dos cientistas, na prática existe uma definição em uma escala maior das prioridades de pesquisa e formação de recursos humanos em ciência. Claro, pode (e deve) haver um processo iterativo nessa definição, uma vez que muitos cientistas serão, de fato, “atraídos” por problemas importantes em um contexto social ou econômico/tecnológico, uma vez que, nesses casos, deve haver uma maior “recompensa” pelo que é produzido em termos de pesquisa (voltamos à ideia da sociologia clássica da Ciência, de Robert Merton, que já discutimos anteriormente (vejam uma síntese na postagem “O que é ciência?”).
Seguindo esse raciocínio, podemos pensar que a própria sociedade, por meio dos seus Governos em diferentes esferas (e preferencialmente por políticas de Estado), vai definir qual é a “agenda” para o desenvolvimento científico e tecnológico do País, o que exige uma discussão ampla e participativa, envolvendo os diversos setores interessados (especialmente a comunidade científica, que vai no final das contas executar tudo isso). De fato, teremos, em junho de 2024, a 5ª. Confêrencia Nacional de Ciência & Tecnologia (a 5ª CNCT&I), organizada pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), exatamente com esse objetivo. O evento acontecerá em Brasília nos dias 4, 5 e 6 de junho, quase 15 anos depois da última conferência, com o subtema por um “...Brasil justo, sustentável e desenvolvido”. A partir desse lema geral, foram estabelecidos 4 eixos temáticos:
1) Recuperação, expansão e consolidação do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação;
2) Reindustrialização em novas bases e apoio à inovação nas empresas;
3) Ciência, tecnologia e inovação para programas e projetos estratégicos nacionais;
4) Ciência, tecnologia e inovação para o desenvolvimento social.
Esses quatro eixos temáticos abrem espaço para uma enorme possibilidade de discussões e foram definidos considerando diversas mudanças que aconteceram no Brasil e no mundo nos últimos 10 anos, tanto em termos de mudanças nas expectativas de desenvolvimento sócio-econômico quanto no próprio avanço no conhecimento. Precisamos certamente reconhecer que temos grandes desafios para o futuro, como sociedade, especialmente pensando nas mudanças globais, no clima e na exaustão de recursos naturais, e as enormes consequências disso, que têm desdobramentos em muitas questões políticas, sociais e econômicas. Na verdade, de forma sintética, podemos enxergar nesses temas as ideias gerais apresentadas anteriormente, ou seja, precisamos pensar na questão do financiamento da ciência e em quais questões são mais importantes em termos de desenvolvimento tecnológico para superar as muitas dificuldades que enfrentamos hoje.
Claro, cada um dos eixos colocados acima apresenta questões mais específicas e seus próprios desafios. Por exemplo, o eixo 1 está focado principalmente na questão da recuperação do sistema, considerando a crise econômica que se instalou no país a partir de 2015, levando a um enorme decaimento do investimento em ciência, tecnologia e educação, bem como as dificuldades encontradas pelo avanço de atitudes anticientíficas e negacionistas nos últimos 4 ou 5 anos. Esse ponto foi discutido muitas e muitas vezes aqui, e pode ser perfeitamente visualizado pelas figuras que sempre vemos mostrando o investimento em ciência pelas agências de fomento como CAPES, CNPq e FINEP, ou no financiamento das Universidades públicas, etc, com um início de recuperação a partir de 2021/2022.
(Fonte: Jornal da USP)
O eixo 2, por sua vez, foca na questão importante da conversão da ciência que é feita nas Universidades e nos centros de pesquisa em inovação para a iniciativa privada, que teria mais condições de efetivamente transformar o conhecimento acadêmico em algo que seja aplicado para a melhoria da sociedade (o que também é o ponto focal do eixo 4). Nesse sentido, é importante que as empresas se envolvam mais no processo de produção do conhecimento, estabelecendo parcerias mais efetivas com as Universidades e/ou estabelecendo seus próprios centros de pesquisa e desenvolvimento e absorvendo os pesquisadores formados nos cursos de pós-graduação nas Universidades. Uma iniciativa importante nesse sentido, que ainda precisa ser amadurecida, é o programa MAI/DAI do CNPq, que propõe o apoio, por meio de bolsas, a “Mestrados e Doutorados Acadêmicos para Inovação”.
O eixo 3 tem por objetivo estabelecer a agenda “em si”, identificando quais problemas deveriam ser priorizados, e claro que termina sendo o ponto de síntese de todas as discussões anteriores, embora ai claramente entram as questões sociológicas e políticas que, em última instância, irão determinar a agenda. Por exemplo, qual a proporção de investimento entre “ciência básica” e “aplicada ou tecnológica” (apesar de já termos discutido as dificuldades para pensar dessa forma “dicotômica”, e as armadilhas que ela pode gerar...). Isso depende em grande parte de quais setores se envolvem mais na discussão e, mais importante, sobre quem é capaz de usar “a posteriori” o que ficar definido na agenda para canalizar recursos. Por exemplo, temos que pensar nos grandes Fundos Setoriais (o mais importante deles, nesse contexto, sendo o FNDCT, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e na aprovação de leis pelo Congresso Nacional, incluindo as Leis de Diretrizes Orçamentários (LDOs) anuais que vão definir o orçamento público e conceder recursos para as agências como CNPq e CAPES no nível Federal, ou para as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) em um nível estadual. No sentido mais geral, quem vai financiar quais ideias, e para onde vão os benefícios disso? Se pensamos, como no eixo 2, em transferência de tecnologia de instituições de ensino e pesquisa para empresas, ótimo, mas em um sistema capitalista (em geral “predatório”, no Brasil), como serão divididos os lucros e quais os benefícios, de fato, para diminuir as desigualdades?
Há muitas outras discussões e reflexões que certamente surgem a partir desses eixos amplos, bem como tentativas de encontrar soluções eficientes para os problemas atuais. Nesse sentido, diferente do que aconteceu nos eventos anteriores, a conferência que ocorrerá em Brasília será uma síntese de uma enorme quantidade de eventos que vêm acontecendo principalmente neste primeiro semestre de 2024, de forma sequencial e hierárquica discutindo uma infinidade de temas. É interessante notar que essa é uma estratégia de ampliar a inclusão social que foi adotada também pela CAPES na estruturação do Plano Nacional de Pós-Graduação 2024-2028, ao longo de 2023, que já discutimos anteriormente (e que não sei se avançou após a exoneração da Professora Mercedes Bustamante da presidência da CAPES, algo lamentável...mas esse é um outro assunto). Em tese, para ampliar essa inclusão essas diversas reuniões devem envolver não apenas a comunidade científica e acadêmica, mas outros setores da sociedade, especialmente o Governo e o setor privado/empresarial/produtivo/corporativo.
Inicialmente, temos as conferências Estaduais e, em seguida, as Regionais, que irão gradualmente agregando geograficamente as questões que serão levadas à Conferência Nacional. Essa estratégia é realmente interessante pois temos, de fato, muitos “brasis”, com realidades sociais e econômicas muito diferentes, isso sem falar nas diferenças de tempo histórico no qual a capacidade de produção científica se instalou em cada região. Assim, temos a possibilidade de identificar problemas e soluções mais locais e mais próximas da realidade dos diferentes setores da sociedade em cada região do País, levando potencialmente a um desenvolvimento mais baseado em soluções locais e à redução de assimetrias. Em Goiás, por exemplo, tivemos a conferência Estadual, organizada pela Secretaria de Estado de C&T, que ocorreu nos dias 21 e 22 de março de 2024, sediada pela PUC-Goiás, em Goiânia. Goiânia também vai sediar a Conferência Regional (Centro-Oeste) que se inicia hoje (29/04) na UFG.
Além disso, temos centenas de “conferências-livres” acontecendo por todo o Brasil, que estão discutindo temas mais específicos que terminam se somando aos esforços de síntese para chegarmos à agenda nacional. Essas conferencias livres são propostas e aprovadas nacionalmente nesse contexto, e passam a fazer parte da programação oficial da 5ª. CNCT&I. Tive oportunidade de participar presencialmente da primeira dessas conferências livres, organizada pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e que discutiu a política e os impactos do programa dos Institutos Nacionais de Ciência & Tecnologia (INCTs) (e na qual, como discutimos anteriormente, o Dr Ricardo Galvão, presidente do CNPq, emitiu algumas opiniões “controversas” sobre diversos aspectos do sistema de ciência e tecnologia no Brasil, especialmente sobre as bolsas de produtividade em pesquisa e a questão da inserção das mulheres na ciência...).
Então, nas conferências livre serão abordadas as questões mais gerais do futuro da Ciência no Brasil e no Mundo, envolvendo temas atuais e importantes em qualquer escala e nas diferentes áreas do conhecimento (por exemplo, o avanço da IA ou, no caso brasileiro, a retomada do processo de industrialização com base em desenvolvimento científico e tecnológico). Mas, além disso, essas conferências terminam por agregar mais discussões no contexto das realidade regionais, e por exemplo no dia 12 de abril tivemos uma aqui em Goiânia uma conferência-livre sobre “Biotecnologias, Conhecimentos e Práticas aplicadas à recuperação, gestão e conservação da biodiversidade no Cerrado”, para discutir as perspectivas de biotecnologia, bioeconomia e biodiversidade no bioma Cerrado, e nesse sentido o foco é pensar, claro, em desenvolvimento sustentável e formas socialmente referenciadas de maior inserção das comunidades tradicionais nos sistemas econômicos. Meus colegas do INCT em “Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução”, sediado na UFBA, organizaram recentemente uma conferência livre intitulada "Incorporando Transdisciplinaridade no Mainstream dos Sistemas Brasileiros de Produção de Conhecimento Científico e Formação de Cientistas para um Brasil Justo, Sustentável e Desenvolvido". Há, claro, muitos e muitos exemplos, e todo esse material que está sendo disponibilizado contém uma enorme quantidade de ideias e discussões que podem auxiliar muito no futuro.
Certamente, há muitos desafios para o futuro e muitos temas para discutir, o que justifica plenamente todo esse movimento. Em um primeiro momento, a lógica subjacente à realização da 5ª. CNCT&I e de todo o esforço associado a ela parte do princípio de que a adoção de políticas públicas e sistemas de regulação justos e que beneficiem a sociedade da forma mais equilibrada possível devem ser baseados em evidências e análises críticas do que temos feito nos últimos anos. Para isso, precisamos continuar investindo na Ciência e reconhecer a contribuição que a comunidade científica e acadêmica, interagindo com todos os demais atores da sociedade, pode dar, de forma organizada, para a resolução dos problemas da atualidade. Entretanto, precisamos pensar se esse pressuposto (da importância da Ciência e Tecnologia gerando benefícios para a sociedade) não é “ingênua”, por de fato ignorar, ou minimizar, pelo menos em parte, algumas questões sociais complexas, ou por lado se tornar “arrogante” ao adotar uma posição “cientificista” de que a solução de todos os problemas da humanidade passa (apenas) pela solução de questões científicas. Vamos refletir um pouco mais sobre isso...
Só reforçando, como já falamos anteriormente e em outras postagens aqui no “Ciência, Universidade e outras Ideias”, mesmo sob visões mais realistas (no sentido epistemológico) das descobertas cientificas, não é possível ignorar que a agenda da pesquisa é social e politicamente determinada. Então, é crítico pensar de que sociedade estamos falando, pois de fato é “ela” que vai definir a visão de mundo que vai guiar o progresso e as direções de avanço do conhecimento científico. Por exemplo, vamos pensar em um tema extremamente importante hoje, com desdobramentos sérios para muitas (senão todas) as atividades humanas, a questão da mudança climática global. Temos, sem dúvida, muitos componentes científicos importantes nessa questão, a começar pelo próprio reconhecimento da origem do problema, e podemos usar nosso conhecimento científico para reduzir as emissões e mitigar os impactos (sendo otimista aqui...). Entretanto, em muitos casos, é preciso considerar que há, na nossa sociedade capitalista agressiva e de interesses imediatos, sérios conflitos econômicos aí, que podem fortemente determinar quais caminhos iremos percorrer no futuro. Entretanto, como parte das estratégias de fazer a sociedade escolher (forçadamente, em muitos casos) caminhos que interessem a certos grupos econômicos e políticos, temos todo o avanço do negacionismo, como Naomi Oreskes discutiu em detalhes no seu excelente “Mercadores da Dúvida”. Vejam, o fato de existirem questões ideológicas e de valores conflitos relacionados à uma questão de futuro ou escolha de caminhos para a sociedade não é, por si só, um problema, de fato é uma característica das sociedades (embora muitos cientistas não aceitem isso...). A questão central é que a discussão sobre interesses, perspectivas e valores seja honesta por todas as partes e que não se usem atitudes negacionistas ou pseudocientíficas para distorcer as evidências a fim de convencer a sociedade de que "não há problemas" (com as mudanças climáticas). Então, nesse sentido, de que adianta os cientistas mostrarem os efeitos e impactos das mudanças climáticas e os muitos problemas decorrentes destas, os governos assinarem grandes acordos internacionais, se no final muito da discussão não é honesta e há muitos outros interesses que podem prevalecer?
Então, a concepção e discussão de uma agenda só é, de fato, válida se a sociedade subjacente a ela tiver clareza sobre esses pontos. E, no final, quem define essa agenda, e mais especificamente quem está construindo a agenda a partir das múltiplas discussões no contexto da 5ª. CNCT&I? Por mais que haja um componente hierárquico e regional e liberdade para definir as conferências livres, e que o setor empresarial e econômico esteja participando (especialmente focando na questão de como inovações tecnológicas podem ajudar a melhorar as empresas e corporações), não podemos imaginar que a sociedade em geral tem clareza dessas questões todas, mesmo a própria comunidade acadêmica que tem participado dessa construção. Caíamos, talvez, em uma versão um pouco diferente da metáfora da "academia na torre de marfim"...Estamos discutindo uma agenda de pesquisa com e para uma sociedade politicamente dividida, com baixo nível de escolaridade e dominada por concepções fundamentalistas religiosas (isso não só no Brasil, mas em muitos lugares do mundo...). O avanço científico, nesse sentido, não garante que a ciência “em si” leve a sociedade para as direções que imaginamos quando ouvimos colegas dizerem (ingenuamente, entendo...) que a ciência é “neutra”, e pensando no próprio lema da conferência, ou seja, pensar em um “...Brasil justo, sustentável e desenvolvido”. Nesse contexto, sempre lembro aos colegas e estudantes que, em 1943-1944, o país mais avançado do mundo em ciência e tecnologia era a Alemanha nazista...Sem mais comentários então. Portanto, o dilema está, que ao admitir essa questão da base social da agenda científica, que por um lado não podemos deixar a agenda à cargo dessa sociedade, mas ao mesmo tempo se não fazemos isso corremos o sério risco de não conseguirmos implementar a agenda, por melhor que ela seja. E isso nos leva a um outro ponto importante...
As discussões no contexto da 5a CNTC&I certamente são importantes em vários sentidos e tem ocorrido inclusive no contexto internacional, pensando em temas atuais e no próprio impacto social da ciência. Mas será que estamos, de fato, atacando os problemas mais fundamentais que temos no Brasil? O que tenho visto, ecoando as discussões que tínhamos no início do (des)governo Bolsonaro, é um grande foco nas questões relacionadas à redução de fomento. Em parte, houve um aumento nos recursos e uma retomada em alguns aspectos, como coloquei (talvez prematuramente) na primeira postagem em 2023, no contexto do slogan que estava sendo adotado no CNPq de que “a ciência voltou”. Tivemos uma sinalização com aumento do valor das bolsas de mestrado e doutorado, e o retorno de alguns editais de fomento, mas tenho a sensação (posso estar errado, claro...) que o sistema pode estar começando a deteriorar novamente. Não vemos uma discussão maior sobre, por exemplo, valorização dos pesquisadores e condições de trabalho, definição de carreira e perspectivas para os jovens.
A evasão e forte redução na demanda pela pós-graduação, por exemplo, continua após o final da pandemia, e é muito fácil "culpar" os cursos e programas por serem “tradicionais” e não atenderem mais aos interesses do “mercado”, como tenho ouvido com uma frequência maior do que gostaria. Será que não é falta de perspectiva e falta de valorização da própria atividade científica? Foco no imediatismo e na solução de problemas "práticos" com enfase em tecnologia, sem reflexão? Com razão, temos críticas (em grande parte corretas, na minha opinião) ao novo programa do CNPq com recursos do FNDCT para “repatriar” jovens pesquisadores que foram para o exterior, mas isso não estanca a “fuga de cérebros” e nem garante que as pessoas irão realmente contribuir para o país. Já passamos da fase de depender cientificamente da Europa e EUA há muito tempo, isso foi uma das conquistas do Sistema Nacional de Pós-Graduação nos últimos 50 anos. Concordo que temos muita gente boa que foi embora, mas ao mesmo tempo temos muita gente boa que ficou por aqui...
Em outro movimento, vemos um enorme número de Universidades Federais e IFs em greve agora, com demandas de aumento salarial e melhoria nas condições de trabalho. “Mixed feelings” sobre esse tema, como sempre, pois sabemos que temos MUITOS problemas nas IES em relação à sua eficiência e interesse real no próprio sistema de ciência e tecnologia no Brasil. Embora a maior parte da pesquisa científica no país seja feita nas Instituições, principalmente universidades, públicas, não acho que a maioria dos docentes das IES contribua, de fato, para isso. A distribuição é incrivelmente agregada, o que levanta muitas questões sobre carreiras e o papel das IES nesse contexto da agenda nacional e internacional de pesquisa. Mas quando vemos o Senado discutir 42 bilhões de reais para aumentos nos salários do Judiciário, que já possuem salários bem maiores do que os equivalentes do poder executivo, e beneficiando um número relativamente pequeno de pessoas (por razões obviamente políticas), fica difícil argumentar...Não precisamos nem mencionar a precarização da atividade dos professores na educação básica, o que é muito importante no Brasil, dada a fortíssima ligação entre educação e ciência. Então, claro que precisamos retomar e aumentar MUITO o nível de financiamento do SNC&T e da educação como um todo para resolver tudo isso, mas é preciso pensar em como alocar corretamente esses recursos e lembrar que financiar pesquisa é, antes de qualquer coisa, valorizar a atividade científica no geral, e essa atividade, por sua vez, é feita por PESSOAS.
Enfim, em síntese, temos muitos problemas no sistema como um todo que, na minha opinião, pelo menos teoricamente, até precedem a discussão da agenda. Nesse sentido, às vezes fico com a impressão de que a discussão da agenda de pesquisa no contexto da 5ª. CNCT&I está acontecendo à margem dessas questões “de fundo” realmente críticas para o sucesso do estabelecimento da agenda, e que estão em outra escala. Com certeza eu estou sendo pessimista e entendo que talvez não haja mesmo outra alternativa, ou seja, não podemos esperar termos uma sociedade mais alinhada com visões de mundo cientificamente coerentes (ainda que não necessariamente cientificistas) para avançarmos na definição da agenda e no estabelecimento de perspectivas de futuro. De fato...Sendo assim, parafraseando um antigo provérbio atribuído a São Francisco de Assis (a sua “Oração da Serenidade”, que aparentemente remonta ao filósofo romano Boécio, um dos fundadores da filosofia escolástica e certamente influenciado pela filosofia estóica), precisamos ter força para mudar o que pode ser mudado, resignação para aceitar o que não conseguimos mudar, e sabedoria para diferenciar essas duas alternativas. De fato, será preciso muita coragem e determinação para tomar muitas decisões estratégicas importantes a partir de qualquer definição de agenda de pesquisa e inovação para o futuro no Brasil, sem as quais corremos o risco de “perder o bonde da história”. Será que temos sabedoria para fazer as escolhas em relação ao que conseguimos efetivamente mudar? Como usar isso para estabelecer os melhores caminhos dentre aqueles possíveis, considerando todos os conflitos de interesse na nossa sociedade do início do século XXI? Não sei, mas vamos torcer para que todo esse esforço e tantas discussões tragam um futuro melhor para todos e que o lema da 5ª. CNCT&I nos ajude, depois de tempos tão difíceis, a ter um “...Brasil justo, sustentável e desenvolvido”. Mas, para isso, não podemos ser ingênuos e ignorar toda a complexidade da sociedade na qual estamos inseridos, no Brasil e no mundo!
(Uma versão resumida dessa postagem foi publicada no jornal “Opção” em 15/04/2024)
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