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Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

Produtividade em Pesquisa, Carreira Acadêmica e Desigualdade de Gênero

Atualizado: 5 de fev.

Já há alguns meses aparecem na mídia várias discussões envolvendo as Bolsas de “Produtividade em Pesquisa” (as bolsas PQ) do CNPq, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico-Tecnológico. Vamos entender melhor o que são essas bolsas PQ e porque elas se tornaram polêmicas.


As bolsas “PQ” são destinadas a pesquisadore(a)s e professore(a)s que atuam nas universidades ou institutos de pesquisa do Brasil, e existe há muitos anos (veja aqui a última regulamentação de concessão dessas bolsas). Elas não são, portanto, bolsas de “formação”, pelo menos não em um sentido mais estrito (como as bolsas de iniciação científica, de mestrado ou de doutorado, ou mesmo pós-doutorado). O objetivo das bolsas PQ é estimular a atuação de docentes mais fortemente em pesquisa e na pós-graduação, por meio de um incentivo financeiro. Na prática, atualmente esse incentivo financeiro se dá pela bolsa “em si”, realmente uma complementação de salário (o valor para o nível mais alto é atualmente de R$ 1500,00 mensais), e por uma outra parte com valor mais ou menos equivalente que é um “grant”, que o(a) pesquisador(a) recebe para pequenas despesas com o seu projeto ou com o laboratório, e que deve ser justificada na prestação de contas ao final da vigência da bolsa).


A bolsa PQ do CNPq é concedida por um período que varia com o nível, sendo de 5 anos para o nível mais alto, que é a bolsa nível “A” (até poucos meses denominada 1A). A cada ciclo, o(a) pesquisador(a) submete um novo projeto de pesquisa para os próximos anos e passa por uma avaliação do curriculum pelo CNPq (mais detalhes abaixo). Em geral um pesquisador mais jovem começa no nível “E” e, à medida que vai produzindo e consolidando sua carreira, ao receber avaliações positivas a cada ciclo, vai sendo “promovido” até o nível “A”. Não existe formalmente uma renovação dessas bolsas, e se um bolsista não atender aos requisitos, ele ou ela podem perder a bolsa no ciclo seguinte (claro, as chances de perder a bolsa são menores à medida que o nível aumenta, pelo menos até um certo ponto...). Existem algumas outras modalidades para pesquisadores mais “sênior”, que podem ser solicitadas depois de vários anos como pesquisar(a) nível “A” e que envolvem receber só a bolsa (ficar sem com o “grant”) oou vice-versa (?). Mais recentemente apareceram as bolsas DT (Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora), na onda no incentivo à “inovação” (seja lá o que isso signifique...), mas a lógica é basicamente a mesma das bolsas PQ.


Claro, existem, em tese, muito mais pesquisadores atuando nas centenas de instituições de pesquisa e ensino superior do Brasil do que as cotas de bolsa PQ e DT disponíveis, o que torna o programa muito competitivo (e, além disso, o número de cotas disponíveis para os diferentes níveis, de “E” a “A”, variam entre as áreas do conhecimento por razões contingenciais e históricas). Temos hoje algo como 15 mil bolsistas PQ, com um orçamento da ordem de R$ 400 milhões anuais. Até mesmo em função do alto nível de competitividade e do destaque que isso dá ao pesquisador do CNPq em termos de reconhecimento, várias avaliações tanto dos programas de pós-graduação pela CAPES ou avaliações institucionais mais gerais usam métricas relacionadas às bolsas PQ, por exemplo, proporção do corpo docente com bolsas PQ (ou, refinando, % de docentes que recebem bolsas no nível 1 - atualmente níveis de “A” a “D” -, isso quando tínhamos a divisão entre bolsas “1” e “2”).


Em resumo, essas são as principais características das bolsas PQ, e a partir dessa descrição geral podemos explorar a origem das duas principais polêmicas que aconteceram recentemente (e estão acontecendo...) envolvendo essas bolsas.


 

Porque existe um programa de bolsas PQ no Brasil? A questão da carreira...


Um primeiro questionamento envolve justamente o incentivo financeiro para pesquisadores e docentes do nível superior pela bolsa PQ. Como sempre comento aqui, o diferencial de um docente em nível superior é justamente a atuação mais forte em pesquisa e produção do conhecimento, e obviamente esse é o trabalho de um pesquisador contratado em um instituto ou organização de pesquisa. Porque, então, é preciso incentivar esses docentes e pesquisadores? Eles já ganham para isso, certo? Se o CNPq destaca alguns desses pesquisadores e dá a eles mais um incentivo, extra, isso não cria uma “casta” dentro das instituições, com consequências diversas? Será que não seria mais importante usar esse volume de recursos em editais de apoio à pesquisa? Esses questionamentos sempre existiram, às vezes de forma subliminar, mas ganharam força quando viralizaram comentários de que o próprio presidente do CNPq, o Dr. Ricardo Galvão da USP, levantou essas questões no ano passado; esses boatos foram negados posteriormente, mas ouvi pessoalmente dele em uma reunião de coordenadores de INCTs realizada na Academia Brasileira de Ciências (ABC) em 24/01/2024, alguns comentários e justificativas nessa mesma direção.

 


Reunião dos Coordenadores dos INCTs na Academia Brasileira de Ciências (ABC), em 24 de janeiro de 2024, mediada pela Profa. Helena Nader (Presidente da ABC) e Prof. Renato Janine (presidente da SBPC), com participação do Presidente do CNPq, Ricardo Galvão, sendo uma das conferências livres da ABC realizadas como preparação para a 5a. Conferencia Nacional de C&T.



Em tese parece mesmo difícil justificar essas bolsas PQ e DT se os pesquisadores das IES e institutos ganham para fazer pesquisa. Mas o ponto central da discussão (e da justificativa...) é que, embora os pesquisadores e docentes das IES recebam para fazer pesquisa, de fato não é bem assim e a cobrança nesse sentido é mínima (para falar a verdade, quase nula...) Assim, as bolsas PQ passaram inclusive a fazer parte da cultura científica do país, sendo um sinal de prestígio e reconhecimento. A questão financeira, ainda que importante, vem inclusive diminuindo por causa da defasagem no valor das bolsas (as bolsas de mestrado e doutorado receberam aumento em 2023, mas as PQ e DT não, embora tenha havido um pequeno incremento no “grant”, que passou a ser dado também para o nível iniciante E, o que foi uma boa notícia).


Já havia discutido um pouco essa questão no contexto das falas do ex-ministro da educação Weintraub na época do (des)governo Bolsonaro, no sentido de mostrar que um(a) docente com doutorado em uma IES tem possibilidades de fazer muitas coisas na Universidade que não só dar 8 horas de aula por semana. Embora as críticas do ex-ministro, como colocadas à época, não fizessem muito sentido no geral, atuar em pesquisa e pós-graduação é apenas uma das atividades possíveis (envolvendo docência, extensão ou administração...), e a proporção de docentes que realmente está envolvida com produção de conhecimento de alto nível varia muito entre instituições com diferentes níveis de maturidade e de cobrança. Em tese, todas essas atividades de ensino, pesquisa e extensão deveriam estar relacionadas sob o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, com foco na produção de conhecimento. Mas, na prática, sabemos que as coisas não são bem assim...


O que vemos, na realidade, é que a carreira docente, tanto nas instituições federais quanto nas estaduais, bem como nos institutos de pesquisa, é muito curta, com poucos níveis e, para falarmos honestamente, com avaliações muito “flexíveis” e baseadas, no geral, em indicadores muito frágeis. Em princípio, teoricamente, é possível que um docente em uma IES tenha uma atuação importante no ensino e na extensão sem que ele ou ela seja um pesquisador de alto nível e com forte inserção internacional em sua área do conhecimento. Nesse sentido, seria realmente interessante ter indicadores em um espaço multidimensional que permitisse que esses docentes pudessem alcançar o topo da carreira considerando as diversas possibilidades de atuação...Mas temos ai duas questões para responder: com que frequência isso REALMENTE acontece? Mais importante, que indicadores são usados nesse espaço multidimensional? Por mais que a gente questione as métricas e discuta os vieses e problemas na avaliação da produção científica, temos indicadores. E quais os indicadores para a qualidade do ensino e da extensão? Podemos medir o número de horas de aula dadas, mas isso não indica qualidade ou envolvimento...O mesmo vale para extensão.


Portanto, o que vemos na prática é que docentes com pouco ou nenhum destaque em pesquisa, ensino ou extensão, que de fato nunca deram uma contribuição relevante para a instituição, chegam ao topo da carreira e são professore(a)s titulares em muitas IES... É justo que todos tenham o mesmo reconhecimento (e salário) nas instituições independente da sua atuação e de sua contribuição? Tudo bem, as atribuições são as mesmas sob um ponto de vista legal (ou seja, todos são contratados para ensino, pesquisa e extensão), mas, mesmo que a avaliação dessas atividades fosse compatível, justa e coerente (e não é...) não seria importante ter incentivos de produtividade? Isso se mistura à própria discussão do salário dos docentes, por exemplo, em termos de até que ponto os salários dos docentes são altos ou baixos em relação a outros cargos da esfera pública federal, por exemplo? Certamente nossos salários são mais baixos (em termos relativos) que muitas outras carreiras, o que justifica a concessão das bolsas PQ para pesquisadores e pesquisadoras de maior destaque...Ao mesmo tempo, pode-se pensar que essa defasagem salarial faz parte do problema, já que existe pouco incentivo à produção de alto nível para as promoções, inclusive porque a diferença de salário entre os níveis não é tão grande assim. Além disso, o próprio governo poderia utilizar isso para justificar que os salários, nesse sentido de falta de produtividade e cobrança e de uma carreira mais estruturada por produtividade, não precisam mesmo de reajustes (e esse argumento já foi utilizado várias vezes no passado, inclusive pelo Weintraub). Em resumo, é complicado falar isso, eu sei, mas essa é a realidade da carreira das IES e institutos de pesquisa no país...


Assim, nesse contexto, ao conceder as bolsas PQ, o CNPq estimula a produção científica mais diferenciada e de alto nível, e “passa uma régua” em nível nacional e elimina as variações que existem em cada instituição, em termos de avaliação. Isso torna mais igualitária inclusive as discriminações que existem em um contexto regional DENTRO do país (já ouvi algumas vezes no passado comentários como "...não é possível que existam pesquisadores de alto nível fora do eixo Rio-São Paulo, ou fora das regiões Sudeste e Sul do Brasil..."). Ônus e bônus de estar fora dos grandes centros de pesquisa e desenvolvimento científico-tecnológico. Mas a bolsa PQ, associada ao Lattes, deu transparência e visibilidade a quem trabalha nas diferentes instituições do país e mitiga esse tipo de comentário infeliz...


Ao mesmo, claro, é possível mesmo que essas bolsas gerem um nível “diferenciado” nas instituições e isso pode eventualmente levar a conflitos ou manifestações de “ciúme”, envolvendo por exemplo discussões sobre “produtivismo” e sobre a ideia de “categorizar as pessoas”. Mas o nosso sistema de promoção da carreira nas IES funciona assim também, de forma comparativa e em níveis, só que é pouco rigoroso e não possui diretrizes claras e objetivas no sentido de aumentar a quantidade e principalmente a qualidade da produção científica brasileira.


O que ouvi recentemente do presidente do CNPq foi justamente isso, que ele entende os problemas das IES e da heterogeneidade regional no país (depois que algumas pessoas se manifestaram explicando a "situação real"), mas ao mesmo tempo ele colocou que o CNPq e a CAPES não teriam obrigação de resolver os problemas de falta de critérios das instituições...Tudo bem, se não o CNPq e a CAPES, complicado, quem vai resolver o problema? O MEC, no caso das IES, vai estabelecer regras nacionais e de mais alto nível para promoção na carreira? O MCTI vai fazer isso para seus institutos de pesquisa? Como coloquei aqui no “Ciência, Universidade e Outras Idéias” no começo de 2023, tudo bem que até 2022 tínhamos que preservar as instituições e tomar cuidado com os ataques vindos do próprio MEC, porque tudo isso seria usado de forma equivocada contra todos nós...Mas agora, ao dizer que “A Ciência Voltou”, é preciso colocar o dedo na ferida. O presidente do CNPq está, em um certo sentido, fazendo isso nesses questionamentos, mas não adianta criticar as bolsas PQ sem apresentar a solução para esse problema que ocorre em uma escala maior...Não estamos na Europa ou nos EUA, onde o sistema funciona de forma muito diferente, para o bem ou para o mal, mas certamente com um nível muito mais elevado de reconhecimento e valorização dos pesquisadores!


Enfim, é um problema complexo com várias facetas, e até por isso ele tem historicamente resistido às várias soluções apresentadas, por diversas razões. O fato é que, nesse sentido, a bolsa PQ é, atualmente, o único diferencial de reconhecimento de um pesquisador no Brasil e, até que os problemas de avaliação e reconhecimento de mérito nas IES sejam resolvidos (e duvido que isso aconteça em curto prazo...), deveríamos fazer um esforço para manter o programa e mesmo ampliá-lo, tanto em termos de número quanto do valor das bolsas PQ. Esse último ponto é interessante também, porque uma das justificativas contra as bolsas PQ é que esse recurso poderia ser aplicada em outros tipos de fomento à pesquisa, em muitos e muitos projetos. Interessante como a academia e a comunidade científica adoram dar “tiros no pé”, que reforçam o argumento colocado acima. Ao invés de pedirmos MAIS RECURSOS para pesquisa, queremos acabar as bolsas PQ para distribuir mais recursos de forma menos rigorosa para mais pessoas...Ou seja, ao invés de incentivar alguém no início da carreira a produzir mais e melhor e ir gradualmente melhorando suas chances de conseguir uma bolsa PQ e mantê-la posteriormente, a ideia é que ele ou ela tenha mais facilidade de acesso a projetos com recursos pífios, pulverizados e desconectados que não vão levar a lugar algum em termos de produção de conhecimento de alto nível (esse é outro tema importante para próximas postagens...).


Claro, o que coloquei acima é um lado da moeda, no sentido de mostrar que o programa de bolsas PQ permite, de forma idealizada, uma correção de distorções no sistema nacional de C&T, promovendo maior justiça em termos de valorização e reconhecimento. Na minha opinião, essa seria SIM uma missão importante do CNPq, mantendo os pesquisadores em atividade e estimulados, ao contrário do que ouvi do presidente do CNPq. Entretanto, é preciso pensar também em até que ponto o sistema efetivamente faz isso e como poderíamos aperfeiçoá-lo ao reconhecer diversos problemas. O que nos leva à segunda polêmica recente envolvendo as bolsas PQ...


 


O Sistema de Concessão das Bolsas PQ e a Questão da Desigualdade de Gênero


No início da postagem expliquei brevemente as principais características do programa de bolsas PQ, mas há alguns detalhes importantes em termos de avaliação. Sabemos que o pesquisador deve submeter um projeto de pesquisa e que seu curriculum vitae é avaliado para a concessão, e isso acontece a partir de um edital que o CNPq lança todos os anos (vejam aqui a última chamada de 2023). Mas, a partir da submissão, o que acontece de fato? O CNPq está estruturado nos Comitês de Avaliação (CAs) que cuidam do processo, que envolve o envio do projeto a consultadores “ad hoc” e análise dos CVs. O envio do projeto aos consultadores acontece de forma automatizada, e o papel dos CAs é receber e avaliar os pareceres e estabelecer critérios de avaliação do currículo e pontuar os pesquisadores, concedendo as bolsas em função das cotas disponíveis para cada área de avaliação. É inevitável que os critérios variem de área para área (vejam mais detalhes sobre os critérios aqui). Esse processo, entretanto, tem alguns problemas que merecem discussão e que ganharam visibilidade recentemente...


Em primeiro lugar, é importante entender que a demanda pelas bolsas PQ é muito grande, e soube que tivemos algo em torno de 12 mil solicitações em 2023!!! Muita gente...Os CAs são formados por bolsistas PQ, em número variável dependendo do tamanho da área, eleitos pela comunidade científica para um mandato de 3 anos, que devem avaliar e pontuar os CVs de cada um dos milhares de pesquisadores que encaminharam projetos (o que é em parte apoiado pelo sistema Lattes do CNPq) e, mais importante, combinar isso com os pareceres de cada projeto. Essa participação dos pesquisadores no CAs é voluntária e não há, mais uma vez, grandes incentivos e a valorização desse trabalho é mínima, ou simplesmente não existe, principalmente por parte das instituições de origem dos membros (digo que essa participação em um CA do CNPq em geral não é reconhecida pela instituição no sentido de haver alguma liberação de outras atividades de ensino ou administração, por exemplo; um membro do CA pode até ganhar “pontos” em uma avaliação qualquer de produção na progressão na carreira, mas de fato alguém que é eleito(a) e indicado(a) para participar de um CAs não vai realmente precisar disso para progredir na carreira...).


Há um enorme esforço dos técnicos do CNPq para conseguir 2 ou 3 pareceres “ad hoc” para cada um dos projetos apresentados a partir de um sistema automatizado de escolha por linhas de pesquisa e palavras-chave (ou seja, não é o CA que indica e convida quais pesquisadores devem avaliar qual projeto com base em sua expertise e experiência). Sabemos e ouvimos com frequência dos colegas que fazem ou fizeram parte dos CAs que muitos dos pareceres são pouco relevantes, equivocados, e não ajudam muito ou mesmo atrapalham (como vamos ver...) a avaliação da concessão das bolsas. Como a avaliação dos projetos é realizada por milhares de pessoas de forma independente nas diferentes áreas, há pouca padronização nos pareceres e é difícil dizer que um projeto está ou não adequado, ou é ou não relevante ou propõe a investigação de problemas atuais e de impacto a partir dos pareceres. Dado o volume de trabalho, nem sempre os CAs conseguem filtrar e realmente avaliar se o parecer foi ou não relevante e se tem o mínimo de coerência. Os pareceres ficam disponíveis apenas para os pesquisadores, de forma privada, na plataforma Carlos Chagas do CNPq. Vejam que esse esquema é bem diferente do que acontece na avaliação dos PPGs pela CAPES, que já discutimos diversas vezes aqui.


Alguns CAs entendem e percebem os problemas com a avaliação dos projetos, e colocam que esse componente teria um peso muito pequeno em relação à análise do CV, o que para mim faz total sentido. Primeiro, talvez pela minha área de atuação em ecologia teórica e evolutiva, e pela maneira como eu trabalho, não sou muito focado em “projetos” sob um ponto de vista mais formal. Para mim as perguntas e ideias vão surgindo e vou tentando resolver. Mas sei que na maioria dos casos não é bem assim, tudo bem. Claro, é preciso tentar deixar organizado e apresentar de forma consistente as ideias do que se pretende fazer principalmente quando o(a) pesquisador vai precisar adquirir equipamentos ou realizar trabalhos de campo ou laboratório e vai pedir recursos para isso...Mas, pensando em uma bolsa PQ, a minha ideia sempre foi que o melhor seria mesmo avaliar a produção passada do pesquisador e conceder a bolsa na expectativa de que essa produção continue ou melhore, de fato (de forma indutiva, eu sei...). Claro, é inevitável que haja alguma discussão sobre como medir a qualidade ou impacto da produção científica, como discutimos recentemente em relação ao QUALIS da CAPES, mas entendo que isso não seja tão complicado, especialmente dentro de áreas mais específicas do conhecimento (em princípio, o somatória do fator de impacto das revistas pelo Web of Science ou CiteScore da SCOPUS, eventualmente com alguma correção e ajuste por critérios de autoria, vai funcionar razoavelmente bem nas ciências naturais, pela minha experiência...mas estou sempre aberto a discussões em relação às métricas, como sempre insisto tudo isso são acordos operacionais, nada disso é “real”).


A avaliação das solicitações de bolsas PQ, envolvendo tanto dificuldades na avaliação dos projetos de pesquisa quanto no estabelecimento de métricas de produtividade nas diferentes áreas do conhecimento abre uma série de questionamentos e aí, finalmente, chegamos ao ponto da ultima polêmica que aconteceu no final de 2023, quando foram divulgados os resultados da última avaliação das solicitações de bolsa PQ, que serão implementadas a partir de março de 2024.


A professora Maria Carlotto da UFABC divulgou no seu twitter que sua solicitação de bolsa PQ tinha sido indeferida e que o parecer argumentava “...provavelmente suas gestações atrapalharam” a realização de pós-doutorado fora do país, “o que poderá ser compensado no futuro”...Isso criou uma grande polêmica e uma revolta na comunidade científica e abriu muitas frentes de discussão, especialmente no contexto da desigualdade de gênero na distribuição das bolsas PQ (a questão do pós-doutorado fora do país merece uma discussão à parte...; vejam algumas das reportagens sobre o tema no G1, Folha de São Paulo, Forum e no jornal Opção, onde fui entrevistado sobre a questão). Essa questão, claro, não é exclusiva da academia, e ocorre com muitas (ou todas) as posições, cargos ou benefícios de nível mais alto e prestigio, em diferentes esferas da nossa sociedade (vejam aqui um excelente relatório sobre desigualdade de gênero na concessão das bolsas PQ, realizado em 2023 pelo movimento Parent in Science) Na realidade alcançar a igualdade de gênero é uma das metas de desenvolvimento sustentável da ONU. Claro, pelo que apresentei acima em relação a como os sistema de avaliação funciona, poderíamos dizer que isso foi um caso isolado e que o consultor “ad hoc” fez uma colocação infeliz, equivocada, e que o CA não conseguiu filtrar isso e excluir esse parecer inadequado do sistema (ainda que esse parecer possa nem ter sido considerado na avaliação). Não precisaríamos nos preocupar tanto com isso e muito menos não precisaríamos questionar todo o sistema de concessão de bolsas PQ em função disso...


Entretanto, mais uma vez o presidente do CNPq se envolveu nessa controvérsia (desnecessariamente) ao comentar o caso, em diversas ocasiões. Basicamente, o que ele quer dizer é que dizer é que não há “preconceito” pelo CNPq e que a desigualdade seria consequência de uma demanda menor por parte das mulheres, o que por sua vez é culpa das instituições (das Universidades?) que prejudicam a progressão das mulheres na carreira. Como assim? Realmente não entendi essa fala que ouvi dele na reunião na ABC e que aparece em várias das respostas do CNPq aos questionamentos... Como mencionei acima, nem temos esse rigor nessas avaliações institucionais...Não sei o que ele quer dizer com isso, mas por exemplo ele coloca a questão da demanda de forma bem confusa, escrevendo que:

 


"Em física, por exemplo (minha área) a demanda por pesquisadoras não passa de 30%; em engenharia elétrica de 10%. Portanto, não adianta aumentar o número de bolsas para mulheres nessas áreas, se o teto de vidro sobre elas está em suas instituições e comunidades de trabalho, e não nas agências de fomento!” (carta do CNPq em 01/02/2024)







 



Sim, esse é JUSTAMENTE o problema que tem sido colocado no mundo todo, existe uma menor DEMANDA das mulheres, principalmente em posições de nível acadêmico mais elevado, justamente por causa do chamado “efeito tesoura”. Esse efeito mostra que a proporção de mulheres/homens está negativamente correlacionada com o nível nas carreiras. De forma otimista, quero crer que o efeito tesoura tenderá a desaparecer ao longo do tempo, até pelas próprias lutas e manifestações que levam à conscientização, de modo que ele ocorre ainda que isso ocorra por razões históricas (ou seja, as pesquisadoras nível "A" do CNPq são raras porque, na época em que elas ingressaram na carreira, digamos 30-40 anos atrás, havia realmente poucas mulheres atuando em pesquisa na maior parte das áreas do conhecimento). Se esse componente histórico for realmente forte, o efeito irá diminuir no futuro se as políticas de inclusão estão funcionando...vamos ver. De qualquer modo, o efeito existe hoje e para dizer que o problema não é preconceito na avaliação precisamos ter uma ideia da relação concessão/demanda por gênero em cada área do conhecimento.


Entendo que parte do argumento do presidente do CNPq (apresentado, claro, de forma confuso e "torta"...) é que a “culpa” do efeito tesoura não é do CNPq, e sim da própria carreira nas instituições e da estrutura social, e que não haveria discriminação por parte dos CAs etc. Não faz sentido pra mim em relação às IES, como já disse, e de qualquer modo há evidências de sexismo nos processos de “peer review”, que inclusive justificam sistemas "cegos" de avaliação (não tenho a pretensão de revisar a extensa literatura sobre isso, mas achei uma discussão disso em 1997 na Nature!!! Vejam aqui uma revisão sistemática recente publicada na PLoS). Mas, enfim, entendo que em tese não deveria haver mesmo qualquer discriminação em relação aos projetos apresentados por pesquisadorAs. Digo isso porque não haveria, em princípio, diferença nos temas de pesquisa ou em termos de relevância científica em projetos propostos por homens e mulheres (mas, ao mesmo tempo, acho que isso é também parte de uma visão limitada de ciência pelos pesquisadore(a)s da nossa área de ciências naturais, mas esse é um outro tema legal para uma postagem futura, um tópico que acho que tem sido negligenciado nas discussões sobre desigualdade de gênero na ciência por aqui, pelo menos). Mas isso não significa que não haja problemas em termos de avaliação pelo CNPq.


Passamos então ao problema que pode (e deve...) existir em termos de avaliação, relacionado ao aspecto mais geral do papel da mulher na nossa sociedade (e que foi, inclusive, tema da redação do ENEM no final de 2023, certo?). Mesmo que não haja preconceito (e não estou dizendo que não há...), o problema na avaliação vai aparecer porque a mulher acumula, no geral, muitas outras atribuições e tarefas domésticas, o que pode, claro, afetar a sua produtividade por um período de tempo até considerável, algo reconhecido já há muito tempo em vários países. Temos que analisar os dados (que não eram tão fáceis assim de compilar, pois apenas recentemente o CNPq colocou essa informação sobre maternidade no Lattes, depois de muitos pedidos de vários movimentos, incluindo especialmente o Parent in Science), mas entendo que esse problema vai ser mais frequente nas solicitações das bolsas PQ do que eu níveis mais baixos, por causa da questão etária e da posição profissional.


Uma mulher que solicita bolsa PQ já vai ter concluído seu doutorado há pelo menos 2 ou 3 anos, vai ter uma posição permanente em uma instituição de ensino ou pesquisa e deve estar já vinculada a um PPG, de modo que ela já deve estar na faixa de 30-35 anos talvez, e espera-se que nessa faixa etária ela já tenha filho(a)s ou esteja planejando tê-lo(a)s em muitos casos, o que certamente possui um impacto em termos de reduzir sua produtividade por algum tempo, pensando em termos gerais. Claro, diferentes mulheres terão realidades diferentes em função de muitos aspectos, incluindo apoio familiar, tipo de trabalho, linha de pesquisa, etc, mas não há dúvida de que há um efeito...O mesmo vai acontecer com candidatas a bolsas de pós-doutorado e mesmo para o ingresso na carreira nas Universidades e Institutos de Pesquisa. Em função disso, já é comum em vários editais de vários países ampliar o tempo de avaliação do CV, por exemplo, ampliando um ano a mais na janela de avaliação para cada filho(a). Se os CVs são analisados por um período de 10 anos, por exemplo, a janela de avaliação passaria a 12 anos se a mulher, nesse período, teve 2 filhos. Não é muito, e sabemos que a demanda pode ser bem maior, mas entendo que é uma boa sinalização e já ajuda. Depois do escândalo com a Profa. Carlotto, o CNPq estabeleceu isso como norma (e sei que alguns CAs já adotavam essa prática há um bom tempo).


Então, temos diferentes causas para o problema da DEMANDA e da AVALIAÇÃO em relação à desigualdade de gênero. Consequentemente, as soluções são diferentes para cada um dos desses componentes. A ideia de ampliar a janela de avaliação dos CV para mulheres com filhos é uma tentativa de mitigar a questão do diferencial de avaliação, não resolve a questão da demanda. Esta deve ser resolvida por ações afirmativas e que incluem diversas estratégias, que vão desde conscientização e estímulo à participação no sistema desde criança ou adolescente até eventualmente o estabelecimento de cotas para resolver passivos históricos (e vejam que é a mesma discussão que temos para desigualdades étnico-raciais ou regionais). O problema é reconhecer passivos e ter boa vontade para tentar resolver as questões. Notem que a SBPC já havia encaminhado aos dirigentes do sistema de C&T do país uma Moção de Apoio: aumento de bolsas e de mulheres bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq”, um documento aprovado durante a 75ª Reunião Anual da SBPC, realizada em julho de 2023, na UFPR. A resposta do CNPq à essa moção reforça alguns dos pontos equivocados e polêmicos colocados acima, inclusive dizer que o problema vem das instituições de ensino e da carreira docente...


Em uma fala no dia 30/01/2024 em um evento na UNICAMP (que foi em geral muito semelhante à fala dele na ABC na semana anterior...), o presidente do CNPq voltou a cometer os mesmos equívocos que comentei acima, mas foi explicitamente agressivo em relação ao movimento Parent in Science, aumentando consideravelmente a polêmica. O Parent in Science é justamente um movimento fundado no Brasil que visa discutir todas essas questões de desigualdade de gênero e inclusão e propor soluções nos diferentes níveis (vejam aqui uma reportagem detalhada no boletim da ABC sobre esse movimento e o vídeo no final da postagem). O movimento aparece na esteira de diversos movimentos e iniciativas globais nessa direção, como o Mothers in Science (por razões sociobiológicas básicas, o foco termina sendo nas mulheres, mas há sempre um efeito, ainda que menor, sobre os homens pais).





Por uma feliz coincidência, no mesmo dia da fala totalmente inadequada e desnecessária do presidente do CNPq na UNICAMP foi publicado um comentário na Nature assinado pela Profa. Fernanda Staniscuaski, da UFRGS, fundadora do movimento, comentando o caso da Profa. Carlotto. Essa publicação reforça a importância do movimento e do tema em geral na Academia hoje, e mostra como as falas do presidente do CNPq estão na contramão do que tem sido discutido e da necessidade de uma mudanças importantes de concepção nesse e em outros aspectos ligados às desigualdades que vemos no Brasil e no mundo.








Não vou repetir todos os pontos acima, mas vejam a nota de repúdio do Parent in Science sobre a fala de Galvão. Assisti ao vídeo no dia com a fala infeliz do presidente do CNPq no dia, mas aparentemente o vídeo foi retirado do domínio público (a fala dele criticando o movimento aparece mais ou menos aos 90 minutos do vídeo, se alguém conseguir acessar...). Há muitos equívocos e pontos confusos na fala dele, como ao dizer que as mulheres produtivas querem ser reconhecidas pelo trabalho e não usar cotas ou coisas do tipo. A fala do presidente do CNPq nessa reunião imediatamente levou a diversas manifestações e notas de repúdio por várias outras entidades além do Parent in Science, claro!


Notem, finalmente, que ele fez essa crítica ao movimento e mostrou a mesma fala confusa em relação às bolsas PQ mesmo depois de ter sido “sutilmente” alertado dos equívocos na reunião anterior na ABC do dia 24 de janeiro, tanto em relação à questão da carreira docente quanto sobre os problemas de desigualdade de gênero, respectivamente pelos Profs. Renato Janine (presidente da SBPC) e pela Profa. Mercedes Bustamante (à época presidente da CAPES; vou resistir à tentação de comentar a saída dela da CAPES essa semana, próxima postagem...). Vejam também que a frase dele acima dizendo que a demanda das mulheres é baixa está na carta resposta dele ao Parent in Science divulgada no dia 01/02/2024! Então, é um pensamento recorrente e equivocado mesmo, não está legal mesmo...Nas palavras (sempre inigualáveis) do saudoso Stephen Jay Gould, “...não se atinge o status de Galileu só por ser perseguido, é preciso estar certo” (em 1977, no “Darwin e os Grandes Enigmas da Vida).

 

 

É isso...Esse tipo de polêmica, principalmente envolvendo o dirigente máximo de uma instituição como o CNPq, tem o potencial de criar, desnecessariamente, um enorme problema e levar a políticas equivocadas que, mais uma vez, vão atrapalhar a ciência no Brasil. O ponto não é cancelar ou suspender o programa de bolsas PQ e DT, ou usar o recurso para outros projetos, mas sim AMPLIAR o fomento à pesquisa científica no Brasil, e melhorar todos os sistemas de avaliação, tornando-os mais justos mas sem deixar de considerar o mérito acadêmico e científico, que é de fato o único impulsionador do desenvolvimento científico e tecnológico em um país. Não tem como fazer ciência de qualidade sem pessoas, e essas pessoas só vão continuar ou ingressar na academia se houver um mínimo de reconhecimento e recompensa (essa é uma concepção bem básica em filosofia e sociologia da ciência, pelo menos em uma visão Mertoniana...). Não está muito claro que isso está efetivamente acontecendo, dadas as contínuas preocupações com o orçamento anunciadas na CAPES e nas manifestações de instituições como ABC e SBPC, bem como os já anunciados cortes nos orçamentos das Universidades federais, alguns dos problemas que já aparecem na LOA para 2024...Como ouvi recentemente de um colega, será mesmo que a “...a Ciência no Brasil voltou, está voltando ou voltou mas já foi embora?” Na esteira das discussões, vamos em seguida para o próximo caso polêmico sobre a saída da Prof. Mercedes Bustamante da presidência da CAPES!!! Tá difícil...

 



 

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