Parece uma passagem bíblica, ou algo épico, hollywoodiano...Mas essa foi a declaração do Secretário de Saúde do Estado de Goiás, Ismael Alexandrino, ao comentar no dia 09 de julho sobre a reabertura definitiva das atividades em Goiânia (e possivelmente no Estado), depois da tentativa frustrada de implementar um esquema de quarentena/abertura alternado de 14 dias. Alexandrino disse que:
“...O caminho agora, tendo em vista que expandimos o que precisávamos de estrutura de saúde, é darmos as mãos para enfrentarmos, até que que a curva se cumpra. A partir de 20%, 25% de contágio da população, caem os níveis de contaminação, de internação e de óbito. Isso ainda não tem grandes explicações, mas vem sendo observado em outros Estados e países” (grifo meu).
Longa estória (me perdoem o anglicanismo), mas aparentemente o Governo “jogou a toalha” e simplesmente desistiu da batalha e caiu no jogo dos empresários e do “setor produtivo”. Para ser justo, não é só culpa das pressões políticas e do setor empresarial, apesar das campanhas publicitárias e difamatórias dirigidas a vários setores. A própria sociedade, por diversas razões, não entende o que está acontecendo e, de modo geral, abandonou a quarentena, na maior parte do Brasil. De fato, há outra declaração de Ismael em que ele diz que:
“Sendo bem realista, não há isolamento, há uma grande inquietação da população e do dia que decretou o último decreto, se o número variou de 1% na taxa de isolamento para mais, foi muito. Então o comportamento que a população saturou, não consegue ficar em casa. Agora nós precisamos pensar em outras formas de minimizar o problema”.
Tudo bem, realmente agora temos que pensar em outras formas de minimizar o problema (é a única coisa que sobra mesmo...). Embora se fale de protocolos revisados de segurança, ainda é preciso avaliar a efetividade dessas medidas e há muita discussão em torno disso, mas claro que pode ser que funcione. Na verdade, é a única esperança... Depois de mais de 100 dias trabalhando arduamente e tentando entender a dinâmica da pandemia, como já comentei anteriormente aqui no “Ciência, Sociedade e Outras Ideias”, estou realmente esgotado. Mas acho que, depois dessa declaração, temos várias coisas para discutir...A pergunta que quero responder, em princípio, é a seguinte: o que significa, na prática, essa fala do nosso secretário de saúde? O que significa chegarmos a 25% da população infectada para que “a curva se cumpra”?
Já discutimos em detalhes a dinâmica matemática do número de infectados durante uma epidemia e como essa dinâmica se reflete em eventos de hospitalização e de óbitos. No caso de uma doença como a COVID-19, para a qual não há tratamento efetivo e ainda não há vacina, já discutimos também que a única maneira de diminuir esses eventos é reduzir o R, ou seja, diminuir o número médio de transmissões. Isso, por sua vez, envolve isolamento social. Mostramos recentemente que há uma correlação de -0,72 entre uma estimativa do R a partir do crescimento de casos e o índice de isolamento social da inloco ao longo do tempo. De modo mais amplo, as medidas oficiais de distanciamento social diminuindo a mobilidade são as mais gerais e efetivas em grandes escalas, embora outras ações, como testagens em massa e rastreamento de contatos, além de protocolos específicos de higiene no nível individual, possam também auxiliar na redução do número de transmissões (especialmente se todas essas estratégias forem coordenadas e integradas, com forte adesão da sociedade). Essas medidas “achatam a curva” ao reduzir o R e, ao final, reduzem o “tamanho” da epidemia, que é a proporção final de pessoas infectadas na população (o attack rate).
Mas, na prática, apesar da efetividade, o problema de períodos longos de quarentena ou lockdown é que há uma série de “efeitos colaterais” na sociedade, o que tem sido especialmente destacado na sociedade brasileira, vivendo em uma situação caótica ao longo de 2019 e 2020. O que temos visto no Brasil principalmente é uma visão “ingênua” de polos opostos entre “salvar vidas” mantendo a quarentena e “preservar a economia” flexibilizando as medidas de distanciamento social. Certamente é preciso manter as atividades essenciais e algumas pessoas vão continuar expostas (principalmente os profissionais de saúde, que lidam todos os dias com os infectados e que são o grupo mais afetado em todo o mundo). Mas além disso a quarentena faz com que muitos dos trabalhadores “não-essenciais” tenham que ficar em casa e teriam que ser mantidos pelas próprias empresas ou pelo Governo. Isso gera um problema econômico que, na verdade, é consequência da nossa sociedade fortemente baseada em consumo do início do século XXI. O que fico pensando é se preservamos as atividades essenciais, e mais algumas, por que tanto barulho sobre as não-essenciais? Aguentamos a pandemia, apesar de algum impacto, tratamos da melhor forma possível quem garante as atividades essenciais, e depois retomamos quando for possível. É o que a Europa está fazendo, o que a Nova Zelândia, Israel e tantos outros países, mesmo a China, fizeram. Além disso, em muitos e muitos casos temos a grande possiblidade de trabalho remoto, sistemas de delivery, aulas remotas, lives, etc. É um novo mundo, ainda temos que amadurecer muita coisa...O que será que está realmente em jogo nesses novos tempos? Sabemos que muitas empresas grandes, inclusive, não querem ou jamais investiram em qualificação, melhoria de sistemas e do ambiente de trabalho...Para completar tudo isso, temos também uma falta de confiança da população no governo de modo geral e, para piorar, há o problema do negacionismo do Governo Federal desde o início da pandemia, que já discutimos bastante e que tem um enorme impacto em termos de criar confusão na população, que termina sem saber como reagir à pandemia. Tem muita coisa para discutirmos aí, mas isso é outro assunto bem mais complexo e não sei nem se estou qualificado para sintetizar tudo isso....Já estou fugindo do tema central dessa postagem. Mas levanto essas questões para chegar à conclusão que, com todos esses problemas, é realmente complicado, praticamente impossível, manter uma quarentena pelo período necessário para controlar a pandemia.
Em Goiás, depois de um fechamento ainda em março que elevou o isolamento social e que efetivamente retardou a expansão da pandemia, gradualmente a sociedade abandonou as restrições e voltou a circular. Com isso, a epidemia voltou inexoravelmente a crescer e estamos vendo isso acontecer agora à nossa volta. Tudo muito lento no início, mas nos aproximamos rapidamente dos 1.000 mortos (confirmados oficialmente) na próxima semana, meados de julho. Mesmo assim, em nível populacional, isso ainda é um número relativamente pequeno se estamos falando de 7 milhões de pessoas em Goiás. Segundo o inquérito em Goiânia, apenas algo como 2% da população já teria sido infectada em meados de maio/início de junho. Portanto, a partir do momento que o Governo desiste do distanciamento social em macroescala em uma fase de expansão da pandemia, com essa fala emblemática do secretário de saúde, ainda há muito espaço para novas infecções. É melhor que as alternativas ao distanciamento funcionem, não precisamos de um modelo computacional complexo que simule o avanço da COVID19 para perceber os problemas disso...Na verdade, para saber o impacto da pandemia em uma cidade ou estado precisamos saber apenas a quantidade provável de infectados (e já vimos que esta, por sua vez, depende do R) e a taxa de letalidade. Entretanto, essa taxa de letalidade não é um número fácil de estimar, por diversas razões. Desculpem, mas voltamos aos números, números e mais números...Mas vamos lá, é só aritmética simples mesmo, só saber as 4 operações (e ler a literatura científica para, a partir daí, chegar a algumas estimativas).
Vamos pensar inicialmente nas notícias que vemos todos os dias na mídia sobre o número de casos e óbitos no Brasil, onde chegamos ao incrível número de 1,7 milhões de "casos" confirmados e pouco mais de 70 mil mortes. Isso significa que a taxa de letalidade da COVID-19 é de cerca de 4%. Em Goiás, temos hoje, dia 11 de julho, quase 36.000 casos e 844 mortes oficialmente hoje, pela SES (ou seja, letalidade igual a 2,36%). Só que esses números não são fáceis de interpretar, por uma razão muito simples. O que são “casos”? Em princípios, poderíamos dizer que casos se referem a pessoas que tiveram algum tipo de sintoma. Ainda é arbitrário, pois haveria muita variação no grau desses sintomas, mas melhora um pouco e podemos calcular o que se chama de “letalidade por caso” (ou case fatality rate; CFR).
Mas, no caso de Goiás, que ainda está em uma fase de expansão mais rápida da epidemia, temos um problema adicional, já que o número de “casos”, por mais arbitrário que seja, está avançando rapidamente e o impacto disso em termos de óbitos vai demorar pelo menos 10-15 dias, pela progressão natural da doença, isso sem contar o tempo de confirmar se esse óbito foi mesmo por COVID-19, finalizar e reportar essa investigação. O processo de interiorização da doença agora em curso amplifica esses problemas, pois muitas das secretarias de saude dos municípios pequenos têm dificuldades de lidar com os sistemas e lidar com tantos protocolos. Então, analisando essa taxa de letalidade de 2,36%, de forma simplista, chegamos à conclusão de que estamos em uma situação bem melhor do que o Brasil como um todo. Mas, na verdade, se pegamos o número de casos e óbitos cujos sintomas começaram até a semana epidemiológica 22 (i.e.., primeira semana de junho; antes do “falso pico” no número de casos gerado por excesso de “casos” por testagens por PCR ou testes serológicos em massa), essa taxa sobe para um valor próximo a 3,5%, conforme as figuras abaixo, extraídas do portal da SES. Então, os problemas aqui em Goiás ainda estão começando a aparecer...
Então, esse número extremamente elevado de quase 36.000 “confirmados” está se tornando cada vez mais heterogêneo à medida que o tempo passa, por uma série de razões. Parece que temos agora, de fato, uma mistura de indivíduos assintomáticos (cuja infecção foi detectada por testes populacionais), casos leves e casos graves. Isso cria, portanto, várias dificuldades para interpretar essa taxa de letalidade, o que nos leva ao próximo número sobre o qual precisamos refletir.
Sabemos que há, na verdade, muitas pessoas que são infectadas e que tiveram contato com o vírus mas que são assintomáticas ou oligosintomáticas para a COVID-19 (e ainda há MUITA incerteza sobre o papel dessas pessoas na expansão da pandemia). Mas a infecção, em termos de dinâmica populacional, está se espalhando independentemente dos sintomas clínicos e da nossa capacidade de detectar esse avanço. Então, seria mais interessante e objetivo pensar no que chamamos de “letalidade por infectado” (infected fatality rate, ou IFR). Só que, para chegar ao IFR, precisaríamos saber quantas pessoas foram de fato infectadas, independentemente de terem sintomas ou não. Ou seja, precisaríamos de testes em massa em delineamentos bem planejados de amostragem para estimar a prevalência do vírus na população, algo extremamente complexo e caro. Mas, de qualquer modo, falei antes que o CFR (letalidade por caso) no Brasil está em torno de 4%. Mas qual seria o nosso IFR? Difícil dizer, mas à medida que incluímos no denominador casos leves, oligosintomáticos ou até assintomáticos, estamos gradualmente nos “afastando” do CFR e nos aproximando do IFR, em termos de definição de taxa de letalidade.
Temos vários trabalhos que tentam calcular e estimar esse IFR a partir de uma série de evidências do tamanho da infecção, especialmente a partir de testagens em massa e correções estatísticas que tentam estimar a proporção de assintomáticos ou oligosintomáticos. Em princípio, estimou-se algo em torno de 0,65%, que foram os valores usados, por exemplo, pelo Imperial College de Londres nas primeiras análises globais. Neil Ferguson e colegas usaram essas estimativas e um modelo complexo para prever que, com um R0 de 3,3, o Brasil poderia chegar a 1,1 milhões de mortes (ele foi duramente criticado por essas estimativas, por absoluta falta de compreensão das pessoas do significado do cálculo; ou seja, ele estava falando de possibilidades, de um cenário, não estava fazendo uma “previsão” - mas pode ser simplesmente má-fé). Uma meta-análise recente (ainda em preprint) chegou a valores semelhantes, até um pouco mais altos (0,75%), embora outras estimativas cheguem a falar em valores 10 vezes menores, eventualmente até menores do que 0,1% (ou seja, talvez até menores do que 1 em 1000). Como certeza, usar 0,65% ao invés de 0,1% criaria uma enorme sobreestimativa dos eventos nos vários modelos, como alguns epidemiologistas argumentam. Mas essa discussão sobre o valor correto ou mais realista de IFR, de qualquer modo, é uma discussão que continua até hoje. Claro, o CFR e o IFR estão fortemente estruturados por idade, de modo que o valor médio final vai depender da distribuição etária da população em questão, bem como da própria eficiência do sistema de hospitalar e de saúde.
Bom, uma vez que entendemos as diferenças entre CFR e IFR e as dificuldades de estimar esse IFR, podemos agora trazer esses números para nossa realidade e pensar em Goiás. Meu colega e amigo Thiago Rangel, que tem liderado as projeções da expansão da COVID-19 em Goiás com um modelo de simulação orientada para o indivíduo (o nosso ABM-COVID-GO III, veja em www.covid.bio.br ), foi duramente criticado e atacado nas redes sociais na semana passada por falar que poderíamos chegar a 18.000 mortes até setembro, já em uma fase final da pandemia, caso nenhum medida fosse tomada (vejam um texto excelente do nosso amigo Thomas Lewinsohn sobre o incidente, publicado no "Eco"...). É um número absurdamente alto e pode soar estranho, mas já discutimos que temos dificuldade em pensar em sistemas não-lineares, no caso “quasi-exponenciais” por longos períodos de tempo.
O nosso modelo (www.covid.bio.br) trabalha efetivamente com a infecção se espalhando pelas pessoas no Estado, estamos assumindo que temos 7 milhões de suscetíveis (talvez isso não seja correto, mas não há informações claras ainda sobre isso). Se temos um R médio de 1,4 - 1,5 sustentado nesse cenário por 3 meses (ou seja, cada 2 pessoas infectam outras 3), já sabemos que o attack rate é aproximadamente 55%, o que significa 3,8 milhões de pessoas infectadas em Goiás ao final da epidemia. Se chegamos à conclusão de que cerca de 18.000 pessoas poderiam morrer nesse cenário, já mais próximo ao final da pandemia, isso significa que o IFR que “emerge” do modelo seria um pouco maior do que 0,46%. Esse é um número muito próximo ao IFR de Ferguson e das meta-análises que discutimos no parágrafo anterior, ou seja, diante dos parâmetros que assumimos e do que conhecemos da COVID19, esse número faz sentido (e esse número não é um parâmetro "dado" ao modelo diretamente, ele “emerge” da dinâmica das infecções a partir das calibrações de prevalência, hospitalizações e óbitos na população de Goiás).
De qualquer modo, concordo que esse número de 18.000 mortes é muito, muito alto, mas o que quis mostrar acima é que o modelo está “tecnicamente” correto a partir do que sabemos sobre a expansão da pandemia em um cenário extremo e acelerado. Há, além disso, algumas incertezas importantes que estão aparecendo nas últimas semanas sobre imunidade cruzada, número de suscetíveis e sobre o papel dos assintomáticos na infecção, como o artigo de Marina Pollán e colaboradores sobre a prevalência da COVID-19 na Espanha e o comentário de Sette & Crotty publicado na Nature Review Immunology, em 7 de julho. Se realmente houver alguma forma de imunidade na população ou se os assintomáticos transmitirem pouco, há diversos parâmetros que precisam ser reestimados e que irão reduzir o tamanho da infecção, afetando bastante as projeções em longo prazo (e colocamos isso nas considerações finais da nossa última nota técnica 07 em www.covid.bio.br). Claro, há ainda uma série de efeitos que poderiam ser incorporados ao modelo, como estruturação social da população em termos de probabilidade de contágio e transmissão, outros fatores de comorbidade e mortalidade natural, maior complexidade estrutural entre e dentro das cidades, etc.
Mas, de forma simples, essas novas ideias sobre a transmissão da COVID19 e imunidade, e mesmo outros fatores perturbando as estimativas dos parâmetros, estariam expressas diretamente no IFR (e, na verdade, muitas dessas incertezas é que levam às discussões sobre qual seria o valor mais realista para o IFR). Além disso, quero crer que não teremos 18.000 mortes em longo prazo porque na verdade em nenhum lugar as coisas chegaram a esse ponto pois ocorrem novas intervenções governamentais e a própria sociedade tende a reagir (mas no Brasil tudo é possível...). Então, chegar a esse número tão elevado de mortes não é um cenário provável, realmente estou contando que alguma coisa vai ser feita...
Mas esperem: o nosso secretário de saúde acabou de dizer “...que a curva de cumpra”, se referindo a algo como 20-25% da população infectada. Ele diz que ninguém sabe bem a razão, mas em outros lugares essa tem sido a proporção da população infectada a partir do qual a infecção se estabiliza (ou seja, menores do que os valores esperados pelo attack rate, talvez por causa das questões de imunidade natural ou cruzada gerando redução no pool de suscetíveis, como coloquei acima). Mas será que, de qualquer modo, ele entende o que ele falou? Vamos pensar que realmente a epidemia se estabilizará com cerca de 20% da população infectada, para simplificar, o que significa em 1,4 milhões de pessoas infectadas pelo SARS-COV2 no Estado de Goiás. Com um IFR de 0,5%, já assumindo portanto mais ou menos 50% de assintomáticos (caindo o attack rate para ~20%), estamos falando de 7.000 pessoas mortas até o final da pandemia. Esse número é aceitável agora? Estamos assumindo isso como previsão e não como cenário extremo? Estamos falando da inexorabilidade de um IFR variando, digamos, entre 0,1% e 1% da população, que dependeria na verdade do número de assintomáticos? Estamos falando não de 0,5% sobre metade população (o attack rate em nosso estudo), mas sim de algo como 0,1% ou 0,2% da população total porque talvez nem toda ela seja suscetível, ou talvez de algo como até 1% apenas da população de suscetíveis (que seria então algo como 14.000 mortos!). Por outro lado, se o IFR baixo for independente da questão dos assintomáticos e a baixa prevalência for função de estruturação social, por exemplo (para uma discussão técnica recente vejam o artigo de Britton e colaboradores publicado na Science há uns 20 dias atrás), então poderiamos ter um IFR bem mais baixo (de 0,1%) sobre esses 20% de infectados, o que significaria algo como 1.400 mortos no final. Mas isso praticamente já é o número de óbitos esperado nas próximas duas ou três semanas no máximo, considerando o grande número de casos e hospitalizações recentes e o padrão de crescimento da epidemia em Goiás! Muito pouco provável, mas na verdade não sabemos a proporção de assintomáticos nem o IFR final e a relação entre esses dois números. Mas o ponto é que, com 20% da população infectada, não estamos falando de números pequenos, continuamos falando de milhares de mortos. Aparentemente esse é o preço que o Estado está disposto a pagar ao abandonar as medidas de distanciamento e já respondemos ao que significa, na prática, a frase do Alexandrino. Mas isso nos leva à outra questão importante: quem efetivamente vai pagar esse preço?
Desde o início da pandemia, a ideia em todo o mundo tem sido a seguinte: é muito difícil interromper as transmissões desse vírus, não é à toa que isso se tornou uma epidemia, e o que conseguimos fazer de melhor é tentar achatar a curva ao máximo para que o sistema de saúde consiga aguentar e dar assistência à maior parte das pessoas que precisem, que desenvolvam sintomas mais graves. Na maior parte dos locais foi preciso reforçar o sistema de saúde para lidar com a maior ocupação do que a “normal”. Claro, trata-se de uma doença nova, com maior necessidade de hospitalização e de óbitos. Mas mesmo assim há uma discussão importante subjacente a essa ideia, que pode ser facilmente distorcida, que é: qual o tamanho do sistema de saúde deverá ser criado para lidar com essa pandemia? Tenho visto vários prefeitos e gestores invertendo esse raciocínio para agradar o setor produtivo, abandonando as medidas que regulam o distanciamento social, deixando o número de transmissões alto e dizendo que isso não é um problema já que eles foram capazes de ampliar o sistema de saúde para lidar com esse aumento. Mas isso significa que, por definição, estamos dispostos a pagar um preço como sociedade pelas mortes dessas pessoas. Preferimos deixar a letalidade (absoluta) aumentar porque podemos usar recursos para absorver mais pessoas nas UTIs. Se deixamos a infecção crescer, podemos receber 1.000 pessoas na UTI ao mesmo tempo, mas isso significa que, em princípio, em uma conta simples, algo como 500 pessoas vão morrer. E se tivéssemos aumentado o isolamento, reduzido o R e tivéssemos menos infeções de modo que só tivéssemos 500 pessoas na UTI? Só 250 teriam morrido então. Ou seja, qual é o “balanço” adequado entre investimento em saúde e mortes? Então, insisto que há uma inversão de raciocínio aí, a ideia não é ampliar a capacidade do sistema de saúde para atender ao máximo de infectados que adoeçam, para poder liberar atividades comerciais, e sim reduzir o número de infectados!
Então, o que quero dizer é que a causa da sobrecarga do sistema de saúde é o tamanho da infecção, de modo que não faz sentido querer resolver esse problema invertendo o raciocínio e dizendo que lidaremos com qualquer tamanho da infecção aumentando o número de leitos. Sei que há uma série de problemas de ordem prática, inclusive ligados à outras demandas sobre o sistema de saúde e sobre a mortalidade em geral na população, mas de qualquer modo inverter a relação causa e efeito aqui leva a uma situação moralmente inaceitável!!!!! Em um extremo, só para fins de raciocínio hipotético, podemos voltar ao cenário de Ferguson, dizer que poderíamos alocar recursos absurdamente elevados para lidar com a pandemia, garantindo hospitais e UTIs para virtualmente todos que precisarem. Com isso, deixamos 1 milhão de pessoas morrerem (na verdade, acho que já estaremos bem próximos a quase 20% disso no final da pandemia por aqui...). É isso, uma boa chance de nos livrarmos de pessoas indesejáveis na nossa sociedade, como colocaram meus amigos Luiz Melo e Jean Baptiste aqui no "Ciência, Universidade e outras Idéias"...Realmente triste! Isso seria obviamente um genocidio e, se for dirigido, eugenia.
Nesse contexto, o artigo de Scott D. Halpern na JAMA é muito interessante no sentido de mostrar uma série de vieses cognitivos agora na pandemia, afetando a população em geral, os gestores e os tomadores de decisão. Por exemplo, achamos que haveria uma neglicência séria por parte de um gestor que não consegue adquirir mais 1 leito de UTI e issa leva a algumas mortes adicionais até que a situação seja resolvida, mas temos dificuldade em culpar outro gestor que não implementou sérias medidas de distanciamento social no início da pandemia e que levaram, em médio-longo prazo, à morte de dezenas ou centenas de pessoas a mais. São vieses associados à personificação da morte e à questões de causalidade em longo prazo, difíceis de resolver sem muita reflexão.
Nesse sentido, a expressão “...que a curva se cumpra” usada por Alexandrino é infeliz principalmente porque dá uma ideia de predestinação. Isso não é aceitável. Não podemos fazer mais nada, vamos tentar manter o sistema de saúde funcionando e tentar lidar com isso. Mas ele mesmo disse que há outras opções e que é preciso buscar alternativas. A curva não está definida, o futuro não está escrito, falamos isso várias vezes. Nós é que determinamos, como sociedade, a trajetória que essa curva vai descrever. Existe, sem dúvida, uma curva esperada na ausência de intervenções, que vai seguir a trajetória que depende dos fatores epidemiológicos e biológicos básicos, basicamente a densidade da população de hospedeiros (nós) e da capacidade do vírus de infectar esses hospedeiros. Mas nós já saímos, há muito tempo, da fase de nos deixarmos levar por essa trajetória "natural", pois temos consciência e não queremos que as pessoas morram e sofram. Afinal, somos humanos, somos a sociedade tecnológica da ciência e da inovação...Não gostamos de dizer que somos diferentes das "bestas"? Mas somos mesmo? Eu, como biólogo, sempre tive lá minhas dúvidas, mas seguimos em frente...
Finalizando, voltamos à grande questão de quem vai realmente pagar o preço? Deixamos a curva seguir seu caminho, mas quem está pagando são os pobres e as pessoas que não vão conseguir se proteger, que não vão ter acesso a um serviço de saúde de qualidade. São as pessoas nas favelas e em péssimas condições de higiene que não têm como se isolar e vão, quase automaticamente, contaminar as 10 pessoaspróximas que moram com ela em uma casa de 20 metros quadrados. Mais importante, essas também são as pessoas menos esclarecidas, que não tiveram acesso mínimo à educação de qualidade, que não entendem a informação conflitante que circula nas redes sociais, que vão aceitar tomar ivermectina ou cloroquina se alguém disser que elas podem ir trabalhar usando uma máscara de pano, pegando um ônibus lotado, e que vai ficar tudo bem com ela e com sua família.
Enfim, o risco de morte pela COVID-19 não é distribuído homogeneamente, já há evidências disso no Brasil e no mundo (vejam o excelente texto de Laura Carvalho e colaboradoras, "COVID-19 e Desigualdade Social no Brasil"). Sem dúvida, a letalidade, independente de qual seja o número final, vai ser bem maior entre as classes menos favorecidas. Então é muito fácil para o “setor produtivo” ficar feliz e dizer que “iniciamos a retomada”! É muito fácil dizer que temos que “priorizar” a economia e que temos um alto desemprego que precisa ser reduzido, que vai morrer mais gente de outros problemas do que de COVID-19...É muito fácil para um gestor ou governante dizer que comprou muitos leitos para absorver os necessitados e que é hora de deixar que a “curva se cumpra”. No final, me fez lembrar a poesia de Chico, “...é gente humilde, que vontade de chorar”
Agradeço aos meus amigos Thiago Rangel por sugestões e ideias no texto, e Luis Mauricio Bini por me chamar atenção para o artigo muito interessante de Scott D. Halpern na JAMA. Em tempo, meu amigo Francisco "Franck" Tavares me chamou atenção para o excelente texto de Laura Carvalho e colaboradoras, "COVID-19 e Desigualdade Social no Brasil".
Logo depois que postei esse texto vi um artigo publicado na Science, de Tom Britton e colaboradores, há mais ou menos 20 dias atrás, que mostra que a proporção de infectados pode ser mesmo menor por causa da estrutura populacional em termos de classes etárias e divisão social, o que reforça o argumento final do texto (e, de fato, não implica necessariamente em um efeito de assintomáticos reduzindo o IFR; mas mostra que, de qualquer modo, a "imunidade" populacional seria adquirida às custas de uma maior prevalência nas classes menos favorecidas). Mudei um pouco o parágrafo sobre a relação entre IFR e prevalência em função disso.
capa: pixabay
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