Fernando Mayer Pelicice
Professor Adjunto do Curso de Ciências Biológicas,
Universidade Federal do Tocantins
Pesquisador 2 do CNPq
As recentes mudanças nas regras de fomento da CAPES (Portaria 34) deixaram os cursos atônitos. A perda de bolsas foi sistêmica e a comunidade acadêmica já prevê impactos sobre a pesquisa científica e formação de pessoal. Cursos consolidados, incluindo os de excelência, perderam muitas bolsas de mestrado e doutorado (> 20%). Entretanto, pouco ou nada tem se dito sobre o futuro dos cursos em consolidação (nota 3), particularmente aqueles localizados no interior, fora dos grandes centros urbanos. Isso me preocupa, pois faço parte de um deles: o Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade, Ecologia e Conservação (PPGBEC) da Universidade Federal do Tocantins. Nosso curso perdeu TODAS as bolsas da CAPES, visto que a agência decidiu deixar de fomentar cursos que receberam nota 3 em três avaliações consecutivas. Eu poderia explanar sobre as inúmeras dificuldades enfrentadas por um curso localizado em um contexto assim particular, mas refletirei apenas sobre três questionamentos que eu desejaria fazer aos atuais gestores da Capes.
Será que a CAPES entende as razões que impedem um PPG do interior subir de nota?
O sistema de avaliação da CAPES vislumbra que os cursos podem ascender na escala de notas, por mérito próprio, rumo ao patamar de excelência (nota 7). A avaliação é multifatorial, mas a pedra de toque é a produção científica (artigos em periódicos qualificados)...o resto acaba sendo balela. Se o curso produzir bastante, ascenderá.
Muito bem... o PPGBEC existe há 12 anos e passou por 3 avaliações. Não subiu de nota em nenhuma. No quadriênio 2013-2016 recebeu conceito máximo (Muito Bom) em todos os quesitos, com exceção da produção científica, que recebeu conceito mediano (Regular); o suficiente para que o comitê não recomendasse nota 4. Será que a coordenação do PPGBEC nunca se preocupou com isso? Eu componho o PPGBEC desde sua criação e minha vivência permitiu constatar in loco toda a seriedade e insistência de um grupo em organizar e aprimorar o curso. Presenciei, por anos a fio, inúmeras discussões sobre estratégias para aumentar a produção docente e discente como meio de atender aos critérios da CAPES – o que se tornou obsessão do PPG. No entanto, a produção científica nunca deslanchou; se manteve desequilibrada, sendo muito baixa para alguns docentes. O problema da produção é um só: o corpo docente, constituído por muitos professores que, por razões diversas, se afastaram da complexa engrenagem da pesquisa e publicação. E parece não haver estímulo, argumento, justificativa ou apoio capaz de resgatá-los.
Mas porque docentes menos produtivos estariam na pós-graduação? Não seria o caso de descredenciá-los? Descredenciar, num campus do interior, significa reduzir o corpo docente, simplesmente porque não há quem colocar no lugar. A lógica do descredenciamento sumário, uma prática comum nos cursos consolidados e recomendada pela CAPES, tem óbvias limitações nos cursos do interior, onde o número de docentes disponíveis para credenciamento é menor. O PPGBEC, localizado no interior do Tocantins, foi formado pelos docentes mais produtivos disponíveis, mas foi necessário complementar o quadro com outros sem produção consistente – os quais têm desempenhado funções importantes, incluindo participação na gestão, oferta de disciplinas, linhas de pesquisa específicas e orientação. Nesse cenário, decidir pelo descredenciamento implica em ficar com um professor a menos, enfraquecendo a estrutura do curso e sobrecarregando outros docentes – incluindo aqueles mais envolvidos com produção científica. Cursos de excelência, em universidades de grandes centros, podem aplicar critérios rígidos de descredenciamento; cursos nota 3 do interior não tem essa oportunidade.
Essa conjuntura nos deixa de mãos atadas frente às cobranças de publicação, ainda mais frente aos rigorosos critérios da área da Biodiversidade, e me faz pensar se a vocação de um PPG no interior deva ser exclusivamente a produção científica. O curso funciona muito bem e forma alunos regularmente para o mercado de trabalho. No caso do PPGBEC, a evolução dos outros conceitos, em meio às múltiplas carências de um campus do interior, comprova o progresso do curso e sua importância regional. É difícil acreditar que os atuais gestores da Capes não tenham considerado isso tudo.
Será que a CAPES entende o significado de não fomentar um PPG localizado no interior?
Perder todas as bolsas significa fomentar o encerramento do curso. Fico a pensar... por qual razão um aluno prestaria a seleção de um PPG para estudar, por dois anos em regime de dedicação exclusiva, sem qualquer apoio financeiro? À luz da dura realidade socioeconômica do Norte (e do Brasil no geral), quantos alunos poderiam ser dar ao luxo? Estudar sem fomento não é a realidade brasileira, especialmente no pretexto da expansão e democratização da pós-graduação. Um curso sem fomento gera uma cascata irreversível de consequências: sem alunos, menos dissertações, menos publicações, logo, manutenção da nota 3 (ou queda para a 2) e persistência da vedação ao fomento. Ao longo de 12 anos, o PPGBEC recebeu regularmente alunos do Tocantins e outros Estados, oferecendo a oportunidade de estudos e pesquisa qualificados. Quase todos os alunos (> 95%) precisaram da bolsa para se manter no curso e de certo não teriam estudado sem isso. Como acreditar na continuidade de um curso, em uma região economicamente frágil, sem o suporte das bolsas?
Penso que seria mais honesto, por parte da CAPES, decretar o fechamento de tais cursos. Seria mais honesto assumir uma política aberta de manutenção de programas apenas nas universidades de grandes centros – como era no passado. Isso nos pouparia, estancaria minha sangria, pois eu continuo a procurar um caminho para manter o curso vivo. E não deixo de pensar na crueldade punitiva, transvestida com a capa da justiça, em cortar as bolsas e relegar um curso à meritocracia mais primitiva: “virem-se e sejam bons”. Será que a CAPES acredita que um curso nota 3, vedado de fomento, terá condições de ascender no sistema e atingir patamar de excelência? É difícil acreditar que os atuais gestores da Capes não tenham considerado isso tudo.
Será que a CAPES entende as consequências de perder um PPG em uma cidade do interior?
O PPGBEC é o único curso da área Biodiversidade no estado do Tocantins. Na verdade, é o único curso focado em temas de diversidade, meio ambiente e conservação em um raio de aproximadamente 1.000 km. O curso está situado em Porto Nacional e vive cotidianamente as dificuldades acadêmicas de sobreviver, isolado, em um campus do interior. Mesmo assim, historicamente, tem oferecido a oportunidade de formação que muitos alunos jamais teriam. Ao longo de sua história (2008 ao presente), o curso formou mais de 110 mestres, com baixíssima taxa de evasão, desempenhando inegável papel na qualificação de pessoal para compor o quadro da educação básica, ensino superior, órgãos públicos e agências ambientais do Tocantins e Estados vizinhos, como Pará, Maranhão, Goiás e Distrito Federal. Muitos egressos, inclusive, continuaram estudando e ingressaram no doutorado em outras universidades. Se o curso encerrar suas atividades ou não for atrativo pela ausência de fomento, o Tocantins deixará de formar profissionais na área da Biodiversidade, criando um vácuo de formação e pesquisa em um estado rico em recursos naturais e abundante em conflitos socioeconômicos.
Tal realidade é única ao PPGBEC? Óbvio que não, pois dezenas de cursos abertos no interior do Norte e Nordeste assumiram uma responsabilidade de transformação social que jamais aconteceria se a Pós-Graduação estivesse restrita aos grandes centros do sul e sudeste do país. Os gestores atuais da CAPES não enxergam esse cenário? A preocupação da Capes quanto aos egressos recai basicamente sobre a publicação das dissertações. Eu e a Capes sabemos que muitas das teses defendidas pelo PPGBEC permanecem não publicadas, mas aparentemente só eu sei das funções sociais que o PPGBEC presta à nação brasileira. Será que a CAPES dimensionou o impacto social gerado com o corte das bolsas? É difícil acreditar que os atuais gestores da Capes não tenham considerado isso tudo.
Minha análise interpretou as ações da CAPES como estratégicas, administrativas e de gestão; meu coração diz, entretanto, que são de natureza essencialmente política, o que torna o quadro ainda mais desolador e incompreensível. A atual pandemia de Covid-19 certamente trará novas questões, mas deixo minha reflexão momentânea, de um professor que dedicou mais de dez anos de sua vida para consolidar um curso de pós-graduação no interior do Brasil.
Capa: Área de Cerrado e a bacia do rio Tocantins, temas centrais de pesquisa do PPGBEC
Quando li a carta do Fernando Pelicice da UFT, divulgada alguns dias atrás, fiquei, bastante emocionado ao lembrar da nossa situação aqui na UFG há 20 ou 25 anos atrás...Temos hoje um PPG nota 7 na área de Biodiversidade, mas não é possível esquecer tudo que passamos ao longo de tantos anos para chegar até aqui. Tínhamos um grupo jovem e idealista, mas na prática a situação era muito parecida com a descrita pelo Fernando. Entretanto, vivíamos em um outro momento onde o crescimento era possível, de modo que com trabalho e dedicação foi possível avançar e fazer o PPG e a Universidade crescerem.
Agora, a situação é bem diferente, com perspectivas de crescimento muito difíceis! Um futuro incerto em tantos aspectos, que podem frustrar as boas intenções e as carreiras de muitos jovens...Torço para que todo esse quadro se reverta e que tantos jovens pesquisadores e docentes brilhantes como o Fernando possam ter a oportunidade de desenvolver a ciência e a educação em suas regiões do nosso país!
Gentilmente ele concordou em divulgar sua "carta aberta" como uma postagem aqui no blog "Ciência, Universidade e outras Ideias". Nesse momento tão terrível que vivemos, espero que seu depoimento ajude na compreensão dos problemas sérios pelos quais passamos hoje na pós-graduação brasileira!
Agradeço o relato. Ajudou a compreender o sistema de avaliação da CAPES para os PPG.
Caríssimo Fernando e Zé Alexandre,
Parabenizo pela coragem em escrever e divulgar um texto que escancara nossa dura realidade com tamanha paixão e comprometimento com um futuro mais digno e soberano para os brasileiros. A história narrada e os questionamentos apontados muito me representam e acredito que a muitos outros colegas de hoje ou do passado. O PPG-Biologia Evolutiva, uma associação das Universidade Estadual de Ponta Grossa e a Universidade Estadual do Centro-Oeste, localizado no interior mais pobre do estado do Paraná, nasceu e ainda não se consolidou por condições semelhantes as que o colega Fernando relatou. O Sul maravilha só existe para as capitais e talvez nem para elas. Como um dos fundadores do PPG-BioEvol, posso relatar que vivi…
Obrigado por compartilhar o texto. Termino a leitura, entretanto, com um tremendo nó na garganta. Força aos colegas da UFT, e das Pós-graduações de todo o Brasil.
Parabéns pelo texto e pela coragem de publica-lo, Fernandinho! Já tinha recebido seu relato dramático e emocionante por e-mail, mas é excelente que agora esteja também disponível on-line, com um link como referência.
Hoje eu tenho eu tenho o "luxo" de estar credenciado em um PPG com conceito 7. Apesar das mazelas que afligem a todos nós (veja os posts anteriores aqui no blog do Alex), nossa situação é relativamente melhor do que a de dezenas de PPGs pelo Brasil, e provavelmente mais confortável do que qualquer PPG no interior do Brasil.
Nesse breve comentário quero aproveitar para destacar o óbvio: todo PPG um dia foi incipiente. Quando era aluno de graduação, lá se vão 20 anos, eu testemunhei em…
Relato triste de um destino provável. Parabéns pelo texto.