top of page
  • Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

Sindemia Brasileira

Atualizado: 31 de dez. de 2020

Chegamos ao final de 2020 e, segundo nossa tradição, costumamos usar essas transições artificiais de unidades discretas de tempo para fazer uma retrospectiva do que aconteceu no ano anterior e, a partir daí, pensar nas perspectivas para o novo ano. Sem dúvida, 2020 foi um ano bastante atípico, marcado pela pandemia da COVID-19 e suas múltiplas implicações não só em termos de saúde, mas também em termos científicos, políticos e sócio-econômicos. Especialmente no Brasil...


Nesse contexto de retrospectiva/perspectivas, para que esta postagem não seja apenas mais uma listagem infindável de problemas pelos quais passamos em 2020 e perspectivas de soluções (sendo otimista...), queria estabelecer algum princípio organizador mais geral, algo que permitisse pensar de forma unificada em tudo que aconteceu neste ano. De fato, essa maneira de avaliar e entender a evidência é uma das estratégias importantes da Ciência. Acho oportuno então começar lembrando que Richard Horton, editor-chefe da prestigiada revista médica The Lancet, publicou no final de setembro um comentário chamando atenção de que a COVID-19 seria melhor classificada como uma SINDEMIA e não (apenas) como uma pandemia, ou seja, uma epidemia que atinge uma escala global, segundo a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS).


O conceito de sindemia foi originalmente proposto pelo Prof. Merrill Singer da Universidade de Connecticut ainda nos anos 90 e discutida mais recentemente em uma série de artigos publicados na The Lancet em 2017, principalmente por Merrill Singer e Emily Mendenhall e colaboradores. A ideia geral é que há, na nossa sociedade moderna uma interação entre várias doenças e destas com fatores sociais, psicológicos, econômicos ou ecológicos, em diferentes situações particulares no tempo ou no espaço. Consequentemente para entender a dinâmica dessa doença e conseguir lidar com elas, precisamos avaliar todo esse contexto mais amplo.


A interação da COVID-19 com outros fatores é bem conhecida e ressaltada (inclusive para justificar certas ações negacionistas...) desde o início da pandemia, em especial a maior mortalidade de pessoas idosas e sua forte relação com obesidade, hipertensão, e outras doenças cardíacas e/ou respiratórias. Fatores de risco existem para muitas, ou todas, as enfermidades, mas o aspecto que justifica a ideia de sindemia é que essas comorbidades, por sua vez, possuem um forte componente “ambiental” (no sentido amplo), sendo em grande parte causadas não por fatores genéticos ou hereditários intrínsecos à nossa espécie, mas sim por nossos hábitos, como dieta e sedendarismo. Temos também fatores emocionais e comportamentais desencadeados pela estrutura da nossa sociedade, que podem agravar enfermidades, notadamente muitas situações de estresse. Tudo isso, em última instância, tem uma relação com forças econômicas e políticas em grandes escalas globais e que determinam formas de governo e sistemas políticos. Todos esses fatores interagem não só em termos de explicar a maior transmissão da pandemia, no caso da COVID-19, mas também no modo como a própria sociedade lida com ela, formando uma rede complexa de causalidade e de retroalimentação ao longo do tempo.


No editorial de 2020, no contexto da COVID-19, Horton chamou atenção para o fato de que, em um primeiro momento, as políticas públicas sobre a COVID estiveram centradas em bloquear as transmissões por meio de quarentenas e lockdowns (e, principalmente no Brasil, na expansão do sistema de atendimento em termos de leitos de UTI...) sendo definidas principalmente por epidemiologistas (com sorte, de fato, se esse foi o caso...). Entretanto, seria preciso considerar os outros aspectos sócio-econômicos na tomada de decisões e equilibrar os diferentes fatores envolvidos. Realmente, o que tenho visto, pelo menos nos círculos mais próximos e acadêmicos com os quais tenho mais contato, é uma forte integração entre pesquisadores de diferentes áreas a fim de mitigar os diferentes problemas causados pela pandemia (isso sem falar nas equipes das secretarias de saúde que, na prática, têm que equilibrar uma série de fatores para definir e implementar suas políticas de monitoramento e controle da pandemia).


Ao mesmo tempo, é interessante notar que Singer e Mendenhall criticaram, ainda em 2019, a ideia de uma "sindemia global" tal qual proposta por uma comissão da The Lancet sobre a questão da obesidade. O que eles colocam é que o conceito de sindemia global minimiza a complexidade das interações por não considerar a variação geográfica dos múltiplos componentes em escala local. Ou seja, em diferentes países, estados, regiões ou mesmo cidades, os fatores que ampliam a propagação e a letalidade, no caso da COVID-19, por exemplo, são diferentes (o que chamamos, tecnicamente, de não-estacionaridade espacial). Isso nos leva à noção bem conhecida, pelo menos entre as pessoas mais esclarecidas, de que diferentes países (ou mesmo Estados e regiões dentro de um país) lidaram de forma diferente com a pandemia. Vejam também a resposta recente de Emily Mendenhall ao comentário de Horton no contexto específico da COVID-19, destacando inclusive que na Nova Zelândia não temos pandemia, muito menos uma sindemia, por exemplo (mas nos EUA sim). Talvez o conceito não se aplique em alguns lugares e a ideia de sindemia em escala global não seja válida de fato. Como disse Mendenhall “...By calling the COVID-19 syndemic global, we miss the point of the concept entirely”, no sentido de não conseguir reconhecer, nessa escala global, os componentes políticos e sócio-economicos da pandemia. Mas, pensando no Brasil, temos muita variação interna no tempo e no espaço das interações que inclusive reforçam esses componentes...Vamos então à sindemia brasileira de 2020!




Pandemia e Sindemia em 2020


Discutimos extensivamente aqui no “Ciência, Universidade e outras Ideias”, ao longo de 2020, muitos assuntos relacionados à pandemia da COVID-19 e suas implicações sociais e conceituais. No contexto de sindemia, o que aconteceu no Brasil foi que a chegada da COVID-19 escancarou muitos dos problemas que já tínhamos antes, alguns deles profundamente arraigados em nossa sociedade, questões estruturantes que nunca foram de fato resolvidas. Muitos desses problemas começaram por causa da crise econômica e política a partir de 2015-2016, mas se agravaram muito com a eleição do governo Bolsonaro, principalmente em função da atitude deste em relação à pandemia e à ciência como um todo, como colocado inclusive já na postagem do final de 2019. Vamos discutir um pouco esses problemas, quem sabe a reflexão nos ajuda em termos de perspectivas e prioridades para 2021!


Inicialmente, como estamos pensando na COVID-19, é importante começar lembrando que, apesar dos problemas de investimento, o Brasil conta com um dos sistemas públicos de saúde mais bem estruturados do mundo, o Sistema Único de Saúde (o SUS). Há certamente dificuldades de gestão do SUS, principalmente por ser um sistema tripartite, com administrações e atribuições em nível federal, estadual e municipal, mas entendo que foi a solução possível e viável em um país de dimensões continentais, com mais de 200 milhões de habitantes. Mais interessante, apesar das dificuldades de gestão, talvez esse sistema administrativo estruturado tenha sido muito oportuno pois permitiu que a política de saúde fosse, na prática, conduzida de forma diferente pelos Estados e Municípios, algo crítico considerando a inoperância e condução política equivocada e negacionista do Ministério da Saúde, especialmente após a saída do ministro Mandetta ainda em abril de 2020. Entendo que, sem o SUS e/ou com uma administração fortemente centralizada em Brasília, a letalidade da COVID-19 seria muito mais alta e ainda mais desigual do que foi...


Como Horton ressaltou, o foco inicial de controle da pandemia, em todos os países, foi a implementação de restrição de movimentação pela adoção de quarentenas e lockdowns, em diferentes escalas e com diferentes níveis de efetividade, a partir de fevereiro/março de 2020. Essas medidas criaram uma série de dificuldades pois, ao mesmo tempo em que é preciso bloquear as transmissões, é preciso manter os serviços essenciais funcionando para que as pessoas possam sobreviver. Isso implica que algumas atividades e funções urbanas, especialmente abastecimento de comida e serviços de saúde, bem como todo o sistema de transporte, precisam ser mantidos. Isso foi feito em um primeiro momento por todos os Estados e municípios do Brasil, mas em um segundo momento começam a aparecer vários problemas que refletem a complexidade da nossa sociedade. Mesmo com a possibilidade de vendas online e outras estratégias possíveis, principalmente a partir de junho e julho muitos outros setores comerciais e organizações sociais começaram a pressionar os Governos nos diferentes níveis. A concepção geral era que era preciso “retomar a economia” e as atividades, o que na realidade queria dizer, em grande parte, retomar os lucros dos empresários a qualquer preço, sem falar na ganância de outros atores sociais. "Quem se importa se algumas pessoas vão morrer...", ou "Pior ficar desempregado e não ter o que comer...", eram frases comuns à época. O auxílio emergencial do Governo Federal foi aclamado por muitos não por permitir a sobrevivência das pessoas, mas sim como um mecanismo capaz de “aquecer” a economia, incentivando o consumo.


Ao mesmo tempo, não há como negar os efeitos psicológicos e emocionais causados pelo isolamento, de modo que muitas pessoas simplesmente se cansaram de ficar em casa e hoje, após mais de 9 meses de pandemia, lotam bares, restaurantes, festas (clandestinas ou não) e viajam para aproveitar as praias e pontos turísticos, se aglomerando em pousadas, hotéis e resorts. É, os ricos se cansaram de ficar em casa...Não é à toa que estamos vendo um recrudescimento da pandemia em todo o Brasil. Simples assim, e não precisamos nem da nova linhagem B.1.1.7 do SARS-COV2, mais transmissível, para explicar o aumento (o que significa que ainda pode piorar, e muito...). Sem dúvida, é difícil lidar com a COVID-19 e, como já dissemos, não é à toa que ela se transformou em uma pandemia. Mesmo vários países com políticas mais bem estruturadas e com mais recursos, como a Alemanha, continuaram sofrendo perdas. Mas há muita variação sobre o modo como as diferentes nações lidam com o problema e, nesse caso, o Brasil tem pouco do que se orgulhar, ao contrário do que foi colocado pelo presidente Bolsonaro em seu pronunciamento de Natal, uma visão totalmente distorcida e alienada da realidade. A figura abaixo, que circulou amplamente nos grupos de WhatsApp há algum tempo com frases de Bolsonaro sobre a COVID-19, ilustra bem o cinismo nesse caso...





A questão da Educação


Nesse sentido de “retomada”, um dos aspectos mais importantes e que tem causado muita controvérsia é a questão do fechamento e abertura das Escolas e Instituições de Ensino (discutimos essa questão em uma postagem anterior, mais especificamente no contexto do ensino superior). Como parte das medidas iniciais de lockdown e quarentena, uma das primeiras medidas em todo o mundo é realmente fechar instituições de ensino e vários trabalhos recentes, incluindo os de Nils Haung e colaboradores publicados na Nature Human Behavior e Jan Brauer e colaboradores publicado na Science, mostram sua efetividade. Essa medida é importante primeiramente para proteger as crianças e adolescentes de uma doença ainda pouco conhecida (sabemos hoje que a letalidade da COVID-19 é bem menor nas crianças, mas ainda há muita discussão sobre o seu papel em termos de cadeias de transmissão). Em segundo lugar, o fechamento das instituições de ensino diminui e muito a circulação geral de pessoas nas cidades, contribuindo para a redução no número de transmissões. Embora não seja fácil avaliar o impacto dessa medida, alguns estudos recentes estimam que o fechamento das escolas reduz em média algo como 25% o número de transmissões (mas chegando a 50% em algumas situações), segundo o trabalho de You Li e colaboradores publicado na The Lancet. Assim, em princípio, o fechamento das escolas, a proibição de aglomerações e o uso de medidas individuais de precaução (máscaras faciais e maior higiene pessoal) seriam capazes de reduzir rapidamente o R efetivo para valores menores do que 1,0 e, assim, controlar a expansão da pandemia (como já discutimos em detalhes anteriormente) ou pelo menos efetivamente “achatar a curva” para que não houvesse colapso nos sistemas de saúde, como discutimos várias vezes. Isso sem falar em políticas mais bem desenhadas de controle e monitoramento da COVID-19, como isolamento de casos e rastreamento de contatos, mais efetivos ainda se associados com testagem molecular em massa para identificar precocemente as pessoas infectadas.



Entretanto, deixar as escolas vazias em longo prazo começou a criar uma série de problemas e “efeitos colaterais” que podem ser bem entendidos no contexto de sindemia. O Ministério da Educação (MEC) autorizou a adoção de ensino remoto “emergencial”, com atividades à distância e aulas “síncronas” ministradas por meio de plataformas como Google Meet, Microsoft Teams e Zoom (apenas para citar as mais usadas). Certamente, poderíamos fazer uma discussão “acadêmica” sobre a efetividade das atividades remotas, inclusive porque os professores não estavam preparados para isso (e muito menos motivados, considerando a carreira historicamente desvalorizada...), mas temos outras questões mais prementes.


Precisamos lembrar, de saída, que temos um sério problema de inclusão digital no Brasil, tanto em termos de qualidade quanto de quantidade. Embora vejamos muitas pessoas utilizando celulares ligados à internet, isso é bem diferente de ter bons pacotes de dados, acesso ilimitado à uma rede de alta velocidade e disponibilidade de um computador que permita a utilização adequada das plataformas e realização de atividades. Isso sem falar na questão de que a maior parte dos estudantes não têm nem mesmo um espaço físico adequado, em casa, com tranquilidade para realizar essas atividades...E as mães e pais que são obrigados a continuar trabalhando, como vão deixar os filhos sozinhos em casa? Como vão ajudá-los e orientá-los nas atividades remotas assíncronas se não há um ambiente adequado para isso e se eles mesmos, infelizmente, em muitos casos não tiveram acesso à escola e nem têm como valorizar a educação? E a questão da merenda escolar, como lidar com isso, já que em muitos lugares do Brasil essa pode ser a principal refeição do dia para milhões e milhões de crianças? O que dizer do aumento da violência doméstica, associado a questões sociais e a problemas de depressão e outros distúrbios causados ou amplificados pelo isolamento? Até que ponto conseguiremos recuperar o que já estava tão degradado? Complicadissimo!



Tudo isso mostra, queiramos ou não, achemos adequado ou não, que o papel da escola no Brasil vai muito além de simplesmente tentar ensinar português, matemática, história, geografia e ciências para as crianças e adolescentes (e estamos aqui falando principalmente da escola pública e de ensino básico, que abrange algo como 70% dos jovens e crianças do país). Então, pela discussão no parágrafo acima, os efeitos colaterais de manter as escolas fechadas são MUITO grandes, o que nos leva a questionar se não teríamos que manter (ou ter mantido) as escolas abertas. De fato, um ponto de vista super válido e alguns argumentam inclusive que a escola, aberta, seria um espaço social fundamental para termos oportunidade de orientar as crianças e suas famílias sobre a pandemia, tentando combater muitas das fakenews e posições negacionistas que se instalaram no Brasil ao longo de 2020 (acho que de forma ingênua, como já discutimos em um contexto mais amplo de divulgação cientifica, mas gosto MUITO dessa ideia ingênua).


Entretanto, do mesmo modo que o fechamento das escolas e instituições de ensino é um fator importante para diminuir as transmissões, sua abertura tende a aumentar essas transmissões mais ou menos na mesma proporção. Mas, em um mundo ideal, poderíamos TER PRIORIZADO a abertura das escolas, adotando protocolos rígidos de segurança, considerando-as como uma atividade essencial em nossa sociedade desde o início da pandemia. Afinal, se as demais medidas de controle e monitoramento da pandemia e o fechamento de atividades não-essenciais funcionam, pode ser seguro abrir as escolas já que o R efetivo poderia ainda assim se manter abaixo de 1,0 (e se a excelente ideia ingênua mencionada acima realmente funcionasse, a escola poderia ser de fato mais um mecanismo para reduzir as transmissões, esclarecendo a população!). Mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu, como esperado pela maneira como a educação é encarada no Brasil. Na verdade, o que temos hoje é que está TUDO aberto, tudo voltou praticamente ao normal, menos as escolas (e muitos querem inclusive usar isso como um argumento – equivocado - para retornar as aulas presenciais de qualquer modo...).


Como já discutimos acima, essas flexibilizações e aberturas aconteceram porque houve, principalmente a partir de junho/julho, uma pressão cada vez maior do setor empresarial para uma reabertura mas, por uma série de razões, não houve uma discussão mais ampla e isenta sobre prioridades, inclusive por questões políticas (é impossível esquecer a importância das eleições municipais em 2020 e o apoio do setor empresarial direto ou indireto). Não houve uma ação clara e coordenada do MEC para discutir a questão e intervir de forma mais contundente nessas políticas de priorização, junto ao Ministério da Saúde, ou mesmo no sentido de apoiar as famílias, os estudantes e os professores para melhorar o ensino remoto ou semi-presencial (embora as instituições de ensino superior, dada a sua autonomia, tenham tentado fazer isso, com maior ou menor sucesso). Nem precisamos falar que não houve um esforço para melhorar a infraestrutura das escolas e sua capacidade de atender aos protocolos para que os gestores e professores, junto às famílias, pudessem liderar a discussão e pensar em retornar às atividades presenciais com o mínimo de segurança.


De novo, tudo isso que foi apontado acima reflete um problema estrutural da nossa sociedade em termos de priorização e valorização da educação. Agora, no final de 2020 e após quase 10 meses de escolas fechadas, a discussão se torna muito difícil...Estamos entre a cruz e a espada, como se diz, o pior dos mundos! Em parte, a abertura das escolas, principalmente no caso do ensino privado, também é motivada por questões econômicas e empresariais, embora hajam tentativas claras de disfarçar isso, usando questões "pedagógicas "(estamos vendo mais uma manifestação da pós-verdade e da pseudociência, agora atingindo as práticas educacionais motivadas por princípios legítimos?). Para aqueles mais interessados no tema, sugiro uma leitura cuidadosa e uma reflexão sobre o Manifesto da ABRASCO, ANPED e muitas outras instituições (vejam também uma de muitas lives sobre esse debate, promovida pela ANPED). Temos que discutir com muito mais calma essa questão das escolas, dependendo do desenrolar da situação no início de 2021, inclusive porque apesar de muitos estados e municípios brasileiros terem permitido a volta às aulas já no final de 2020, a partir de setembro ou outubro, esse retorno foi tímido e limitado pelos protocolos, de modo que dificilmente o recrudescimento da pandemia que vemos agora seria explicado por essa abertura. Mas isso pode mudar, especialmente se a abertura se sobrepuser ao recrudescimento que estamos começando a ver...



Meio Ambiente


Passando para outra questão importante no contexto da sindemia brasileira, não podemos esquecer a questão ambiental e de mudança climática em 2020. Em uma escala global, certamente essas questões estão associadas à ideia de pandemias por uma maior possibilidade de que eventos de spillover (ou seja, a adaptação biológica de agentes infecciosos de populações animais para populações humanas) passem a ter um impacto global. Esse é um tema já conhecido e discutido há muito tempo pelos cientistas mas que, de fato, ficou mais evidenciado na pandemia de 2020. Mais interessante, o artigo publicado na Science por minha colega Mariana Vale, da UFRJ, e vários colaboradores, ressalta que o investimento em conservação dos ambientes naturais e monitoramento de biodiversidade a fim de minimizar potenciais spillovers, seria muito, muito inferior às perdas econômicas causadas pela COVID-19 ao longo de 2020, isso sem falar dos outros benefícios de tais ações (assistam a uma palestra da Mariana sobre a questões mais gerais de spillover e sobre o artigo da Science no canal do YouTube do nosso INCT em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade).


O objetivo aqui não é revisar todos os problemas na área ambiental pelos quais passamos em 2020 (a lista seria enorme, então para isso sugiro uma boa olhada no website da Coalizão "Ciência & Sociedade"). Em um tema associado, obviamente o Governo Bolsonaro já tinha estabelecido desde o início de 2019 uma péssima política em relação às populações indígenas e tradicionais (e muitos desses problemas se agravaram dada a maior letalidade e dificuldades de acesso aos sistemas de saúde por esse componente mais pobre e desamparado da população). Não podemos esquecer também todos os outros problemas de degradação ambiental nos anos de 2019 e 2020, além de uma série de desastres diplomáticos em relação à questão das mudanças climáticas, como vocês vão poder constatar a partir das muitas publicações e comentários da Coalizão "Ciência & Sociedade".


Embora a questão do meio ambiente não esteja diretamente associada à COVID-19 em um contexto específico ou local/regional/nacional, há alguns aspectos importantes que merecem destaque em 2020 no contexto mais amplo de sindemia no Brasil. Desde 2019 vemos uma série de absurdos em relação às políticas ambientais, mas nada mostra tão claramente a ideia de “interação” entre os efeitos, em um sentido estatístico, quanto as falas do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles na fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, sobre “...ir passando a boiada”. De forma absolutamente inacreditável, Salles propôs aproveitar um momento no qual a população e a mídia estavam concentradas no problema da pandemia para regulamentar uma série de práticas ofensivas ao meio ambiente e eticamente questionáveis em outros setores, defendendo explicitamente seus interesses.


Se gradualmente isso se confirma no futuro próximo (e os problemas de fato continuam...), quando as próximas gerações de pesquisadores analisarem as séries temporais vão observar um pico de aumento simultâneo da degradação ambiental e da mortalidade por agentes infecciosos (no caso, o SARS-COV-2), mas elas certamente vão entender a relação mais complexa de causalidade aí se incorporarem às análises o sistema de Governo vigente à época, comparando por exemplo os diferentes países (reforçando a importância da questão geográfica e local na definição de sindemia que Singer e Mendenhall ressaltaram). Países com um governo mais democrático e mais positivos em relação às questões ambientais provavelmente terão mais sucesso no controle da pandemia também em função da complexa rede de causalidade.




Perspectivas


Em termos de perspectivas, estamos terminando 2020 e vamos começar 2021 com um claro aumento no número de casos e óbitos, o que pode ser chamado em alguns lugares de “2ª. onda” da COVID-19 (algo que discutimos em detalhes em uma postagem recente e que, infelizmente, vem se confirmando desde então...). Temos também muita discussão sobre a possibilidade de termos no Brasil uma vacinação em grande escala ao longo do ano (e que já começou em muitos países), mas é preciso ressaltar nesse sentido que os fatores econômicos e geopolíticos ligados às disputas comerciais entre as empresas farmacêuticas já estão tendo um grande impacto no Brasil. Paradoxalmente, esses dois fatores (um recrudescimento da pandemia no início de 2021 e a possibilidade de vacinação em massa) apresentam uma interação negativa, pois à medida que aumentam as esperanças de um “retorno à normalidade” pelas vacinas, as pessoas relaxam nas medidas de precaução, inclusive porque não entendem os atrasos e as dificuldades logísticas de fazer com que a vacinação tenha efetividade populacional para controlar a COVID-19. Isso vai demorar...Com isso, temos de volta toda a discussão sobre flexibilização das medidas de isolamento social e protocolos de segurança, e consequentemente todas as implicações sócio-econômicas. Isso sem falar no negacionismo científico e no movimento anti-vacinas...


A partir de video disponibilizado no "Correio Braziliense", em 08/09/2020

Para os mais otimistas, a ciência realmente teve maior visibilidade em 2020 e já há algumas avaliações que mostram que a confiança da população na ciência como uma forma de resolver os problemas da sociedade melhorou. Mesmo assim, temos que lidar com uma quantidade cada vez maior de fake news, políticas anticientíficas e movimentos negacionistas, e confesso que não sei onde vamos parar com isso. Sem dúvida, os pesquisadores mostraram que a Ciência é capaz de resolver o problema da COVID-19, entendendo e monitorando sua dinâmica e melhorando as práticas médicas nos hospitais e UTIs. É inegável a importância da Ciência em termos do desenvolvimento de vacinas específicas em tão curto espaço de tempo, inclusive utilizando novas tecnologias para promover a imunidade. Entretanto, mesmo que a Ciência tenha dado muitas respostas, claro que nem sempre elas se transformam em políticas públicas, tanto por causa das incertezas quanto por questões políticas e pela interação complexa com outros setores da sociedade e interesses econômicos, como discutimos acima. Ainda vamos ver, em 2021, muita polêmica e muitos conflitos relacionados às questões geopolíticas e comerciais das vacinas, o que deve nos levar a uma discussão importante sobre o papel social da ciência atrelada ao desenvolvimento tecnológico...Mas vamos esperar um pouco para ver como essa questão se desenrola.


Muitas dessas questões foram discutidas no último webinar de 2020 da Academia Brasileira de Ciências (ABC) sobre "POVOS TRADICIONAIS, SAÚDE, EDUCAÇÃO, MEIO AMBIENTE", promovido em parceria com a Coalizão “Ciência e Sociedade”, do qual tive a honra de participar (vejam o vídeo no canal do YouTube da ABC que está no final da postagem), e nos 4 textos que foram publicados no “Direto da Ciência” agora em dezembro sobre saúde, educação, meio ambiente e povos tradicionais. De modo geral, a ideia é que, apesar de tantos problemas discutidos acima, temos que continuar insistindo na racionalidade e na defesa da ciência como uma maneira de resolver nossos problemas e estabelecer nela valores que possam melhorar nossa sociedade. Precisamos repensar muitos aspectos da nossa sociedade e da nossa cultura em geral, acho que em particular precisamos rever a maneira como usamos e compartilhamos o conhecimento científico e tecnológico no século XXI. Nesse sentido, talvez nossa sobrevivência no futuro próximo dependa de estabelecermos "vacinas comportamentais" mais eficientes, como discutido no excelente trabalho publicado recentemente pelo meu colega Marcelo Henriques, da Universidade Federal de Jataí, e colaboradores, no International Journal of Environmental Research and Public Health. Ainda temos tantas coisas importantes para discutir em relação à sindemia...Mas é isso, por enquanto.


Finalmente, em um contexto mais amplo amplo das perspectivas, quero terminar com uma mensagem bem interessante e positiva que vi no Facebook do meu grande amigo Luiz Mello recentemente. Ele sugere que temos que encarar, no futuro, o ano de 2020 como um kintsugi, a arte japonesa de reparar cerâmicas quebradas com uma massa contendo pó de ouro, prata ou platina. Um kintsugi pode ser pensado em um contexto cultural mais amplo, refletindo a aceitação das imperfeições, o reconhecimento dos efeitos do desgaste com o passar do tempo, mas ainda assim entendendo o valor intrínseco das coisas. Acho que é uma excelente metáfora, realmente 2020 é um ano para não esquecermos! É importante que sejamos capazes, apesar da dor e do sofrimento de tantas pessoas, de lembrar desse ano para entender melhor nossa sociedade e a nós mesmos. Tenho esperança de que iremos restaurar nossa sabedoria algum dia, mas temos que fazer isso sem esquecer toda a incompetência, a inoperância, a falta de empatia, os delírios, o negacionismo...Que pensemos em 2020 com um kintsugi para que possamos construir um futuro melhor sem jamais esquecer dos problemas pelos quais passamos e as lições que podemos tirar deles.


Webinar "POVOS TRADICIONAIS, SAÚDE, EDUCAÇÃO, MEIO AMBIENTE"




Capa: Athena, Deusa Grega da Sabedoria (Bornova, Turquia, Século II A.C.) (Pinterest) (restauração Kintsugi hipotética...)




PS: Em tempo, achei hoje (31/12) essa frase de Yuval Harari que expressa bem o que coloquei no texto:


"It’s too soon to tell how future generations will remember 2020. On a personal level, many of us have no doubt learned a thing or two about the value of good health, social contacts, freedom of movement, and an internet connection. On a collective level, our battle with Covid-19 has so far been a scientific triumph coupled with a political fiasco".


354 visualizações1 comentário

Posts recentes

Ver tudo

1 Comment


Edilson Araujo
Edilson Araujo
Dec 29, 2020

Alexandre, você conseguiu sintetizar muito bem as diversas vertentes envolvidas no contexto de uma sindemia: saúde, ambiente, economia, educação, governo e sociedade. Acho que o ponto comum de todos esses fatores passam pela racionalidade, que está em crise. Sem Ciência não há racionalidade e sem racionalidade continuaremos à deriva.

Like
bottom of page