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Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

#SomosTodasVelhos: notas sobre grupo de risco em tempos de pandemia

Luiz Mello


Jean Baptista


Professores da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) e

"Ser-Tão" (Núcleo de Ensino, Extensão e Pesquisa em Gênero e Sexualidade)

Universidade Federal de Goiás (UFG)



V, de viado. V, de velho. A tragédia do V renascida na ideia de “grupo de risco”. Muitas de nós fomos mortas sem termos estado doentes. E muitos correm o risco de outra vez morrerem de morte matada.


Em meio à epidemia do HIV dos anos 1980, deveríamos ter sido tod@s VIADOS — aqui entendido como coletivo de gays, travestis, transexuais, bichas, bissexuais, HSH e outros. Conhecemos a história e sabemos o rumo que tomou. Em meio à pandemia da Covid-19, é nossa obrigação agora sermos tod@s VELH@S.


Nas disputas de narrativas entre partidários da quarentena vertical (específica para “grupos de risco”, em particular idosos), geralmente fundados no senso comum religioso e no achismo narcisista, e defensores da quarentena horizontal (para todas as pessoas, indistintamente), quem viver verá o acerto da estratégia que urgentemente precisamos adotar, sem dúvida a segunda, reconhecida em consenso científico em escala planetária.


Como mostrou Sidarta Ribeiro em artigo impressionante, assim como Gregório Duvivier em vídeo genial, o coronavírus e o fascismo de nossas autoridades, em nível mundial, mas especialmente no Brasil, nos colocam diante de uma nova era. E nessa era o risco não atinge mais apenas viados e velhos. Mas a espécie inteira, a humanidade como um todo.




Como que a reviver um pesadelo, nós, sobreviventes do HIV, estamos diante de histórias e memórias traumáticas com a chegada da atual pandemia. Não apenas por reencontrarmos o medo de uma doença e da morte, mas também por sabermos que junto a uma pandemia surge inevitavelmente uma onda de ignorância e preconceito tão letal quanto o vírus que a causa.


Cientistas sociais, historiador@s e pesquisador@s de várias áreas, estudamos há muitas décadas o comportamento social ao longo das pandemias de varíola, sarampo, gripe espanhola, peste bubônica e Aids, entre outras. Tal qual em outros momentos da história humana, costumamos, como sociedades e grupos, repetir dois comportamentos: primeiro, a perseguição e o abandono social dos considerados difusores da doença, suas vítimas iniciais; segundo, a contaminação daqueles que, ao se julgarem imunes, tornam-se presas fáceis dos vírus, espalhando-os ainda mais rápido.


O que estamos vendo hoje é uma versão hiperbolizada dos mesmos fenômenos a partir da lógica nefasta do mercado neoliberal de ultra-ultra direita, cujos representantes mais desavergonhados inescrupulosamente vêm a público dizer: que morram os velhos e os que não tem trajetória de “atleta”; a produção e o consumo não podem parar; que siga o baile.


Uma prévia disso tudo, em escala menor, mas não menos trágica, ocorreu durante o surgimento e a difusão da epidemia de Aids. Batizada de “peste gay” em seus primeiros anos, governos, jornalistas, cientistas e profissionais da saúde costumavam tranquilizar a população: “Não se preocupem, mata apenas gays”. Mais tarde, viram-se impelidos a ampliar o horizonte do massacre epidêmico a partir de uma nova versão da ideia de grupo de risco – não mais apenas gays, mas os 4Hs: Homossexuais, Heroinômanos, Hemofílicos e Haitianos.


Ao nos abandonarem, os difusores deste pensamento justificaram no mínimo uma década sem investimentos, estudos e estratégias de testagem e prevenção em escala global, convertendo-se em corresponsáveis por milhões de mortes não apenas de gays, mas também de não-gays, hemofílicos, bebês, mulheres casadas monogâmicas, idosos, jovens, crianças, ricos e, especialmente, POBRES, consideradas as especificidades da materialização da epidemia em cada sociedade e suas respectivas dinâmicas de opressão, a partir das quais se decide quem deve morrer ou viver.


Afinal, os vírus não são imbecis, nem possuem preconceitos. Ao contrário, são inclusivos e não respeitam qualquer marcador social de diferença. Mas, definitivamente, a desigualdade estrutural das sociedades humanas sempre coloca em posição de maior vulnerabilidade as pessoas mais pobres, as menos escolarizadas, as sem acesso à informação e as imersas em lógicas de subalternidade interseccionadas e fundadas em eixos de opressão relacionados a cor/raça, sexo/gênero, idade, (d)eficiência, renda/classe, entre outros.


Até praticamente ontem, as pessoas ricas se sentiam protegidas por sua riqueza e os pobres, especialmente no Brasil, começavam a embarcar em discursos genocidas neoliberais, defensores da privatização irrestrita dos sistemas públicos de saúde, educação, previdência social e todas as demais dimensões da vida humana, que passam a subordinar-se em aparência, mais que em essência, ao deus-mercado. A surpresa do cenário de uma pandemia como a que estamos vivendo é que nem sempre o dinheiro será suficiente para assegurar vida, já que os melhores médicos e equipamentos para enfrentar crises como essas são os oferecidos pelo Estado, no caso específico do Brasil, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), até ontem um vilão que a classe dominante brasileira e seus asseclas menos esclarecidos teimavam em propor extinguir.


Mas ser contaminado pelo novo coronavírus não é por si só uma sentença de morte e aí, como se viu também no caso do HIV, é que os privilégios de renda/classe, cor/raça, sexo/gênero, idade, escolaridade e muitos outros farão toda a diferença. Afinal, quem consegue sobreviver no contexto de pandemia sem salário fixo no final do mês garantido, sem condições de comprar alimentos e material de higiene imprescindíveis à vida, sem morar em espaço seguro e com direito à privacidade pessoal e de sua família, sem um ambiente de convivência livre de violência e abuso sexual ou moral? Quem pode assegurar-se o privilégio de não sair de casa no período de quarentena, a não ser quando estritamente necessário, e, nesses casos, municiado do kit III Guerra Mundial: máscaras, luvas, álcool em gel, transporte privado, cartão de crédito/débito e distância social assegurada por não precisar ir a lugares abarrotados de outras pessoas?


E ainda: quem consegue fazer hoje no Brasil um exame para diagnóstico do novo coronavírus, a não ser que já esteja em estado quase terminal ou possua um quadro de comorbidades muito severas que potencializam enormemente a letalidade do vírus? A resposta é uma só: AS PESSOAS RICAS, usando seus privilégios também de cor e de gênero, incluídos não só os donos do capital no sentido clássico, mas também artistas, influenciadores digitais e atletas. Definitivamente, os vírus até tentam, mas não conseguem ser democráticos em sua potência de morte. Tânatos rima com miséria, especialmente em sociedades absurdamente desiguais em tantos níveis como a nossa.


Mas, hoje, somente pessoas ignorantes e egoístas acreditam na legitimidade da descartabilidade de potenciais vítimas integrantes do“grupo de risco” para a Covid-19, entre as quais, tragicamente, o representante máximo do governo brasileiro, e parte dos empresários-políticos e raros jornalistas e profissionais de saúde. Muitos desses ainda insistem em ressuscitar – cada vez menos, é importante dizer – o uso da expressão “grupo de risco” para compreender a dinâmica da atual pandemia. Neste “grupo”, estariam profissionais de saúde, idos@s, imunodepressiv@s, cardiopatas, pneumopatas e fumantes. Quanto tempo essas autoridades negacionistas desperdiçarão na antiluta contra a pandemia, até que o “povo de bem” brasileiro volte-se contra eles?


Ainda hoje muitos argumentam: “basta isolar os idosos”. Já vimos onde isso pode acabar. Filhas e netos saem de casa para o trabalho, voltam com o pão e o vírus. Às vezes, só com o vírus, afinal, a crise de empregabilidade no Brasil antecede a Covid 19, mas agora atinge proporções apocalípticas. E os riscos de morte começam pelos velhos, mas se expandem rapidamente para outros grupos etários, especialmente se marcados pelo que a pobreza tem de inerente no Brasil e no mundo: cor/raça e sexo/gênero. Quantos já morreram e nem foram contabilizados nas estatísticas oficiais, por nunca terem sido testados para o novo coronavírus e muito menos autopsiados antes de serem sepultados?


E mais: ao difundir a noção de “grupo de risco”, o governo federal, especialmente na figura de seu presidente, envia, em escala nacional ridicularizada em nível mundial, a mensagem de que quem não faz parte do tal grupo está seguro, podendo andar despreocupado por aí, furar a quarentena, ir à praia, frequentar baladas, enfim, viver normalmente.


Já lideranças religiosas expressivas no Brasil, especialmente entre grupos neopentecostais fundamentalistas, ainda insistem em manter suas igrejas abertas, indiferentes ao sofrimento que causarão, diante de cada novo doente e de cada nova morte, nas famílias de seus fiéis e na sociedade em geral. Não nos esqueçamos dos casos emblemáticos na França e na Coréia do Sul: igrejas lotadas de fiéis foram grandes centros de contaminação em massa pelo novo coronavírus, para muito além das fronteiras físicas dos templos.


Para piorar, alguns dos que deveriam ser lideranças políticas dão exemplos absolutamente irresponsáveis de interação social massiva, estimulando seus eleitores a terem um comportamento descompromissado com a própria saúde e a dos demais. Demonstram, assim, não possuir qualquer empatia e capacidade de compreender, em uma perspectiva científica, o que está de fato acontecendo, a partir do exemplo da dimensão mortal da pandemia em outros país. Praticamente todas as lideranças políticas de outros reavaliaram nos últimos dias seu negacionismo inicial, a partir da evidência científica e da pressão da opinião pública de seus países e mundial, curvando-se à trágica constatação: isolamento social é a principal estratégia, hoje, para diminuir a curva de contaminação do vírus, evitando a falência dos sistemas de saúde, a morte generalizada e o caos social.


Poderíamos simplesmente sugerir substituir a expressão “grupo de risco” por “grupo vulnerável”. Em tese, com essa troca, assumiríamos uma terminologia sem a marca do horror profundo relacionado à LGBTfobia e à Aids. Mas isso não seria trocar um risco por outro? Afinal, ser categorizado como “grupo vulnerável”, hoje, de maneira objetiva e empiricamente constatável nas filas de hospitais, não ajuda ninguém. Ao contrário, na Itália, na Espanha e cada vez mais em muitos outros lugares do mundo, com sistemas públicos de saúde exemplares hoje sucateados, médicos estão tendo que escolher a quem dedicarão atenção, equipamentos e leitos.


O pano de fundo, nesses casos, continua a ser se o paciente infectado é ou não integrante de “grupo vulnerável”, mas agora no sentido de possuir “menor chance de sobreviver” ou “levar mais tempo para se recuperar” da Covid-19, mesmo tendo acesso ao melhor que as tecnologias e os cuidados em saúde possam proporcionar. Em face da inevitabilidade da "Escolha de Sofia" (o filme, para quem não lembra, do diretor Alan Pakula, de 1982), os integrantes de grupos de risco/vulneráveis perdem o lugar de prioridade que supostamente seria seu. A atenção e os cuidados passam a ter como alvo os mais jovens, os bem nutridos, os sem histórico de doenças graves, por possuírem condições prévias que ampliam as chances de sobrevivência no cenário do pandemônio que se descortina. Nesse sentindo, a partir de um critério de elegibilidade clínica, a expressão “grupo de risco” ou “grupo vulnerável” passa a fragilizar ainda mais quem em tese deveria proteger.



A OMS já avisou: crianças, jovens e adultos sem qualquer problema prévio de saúde também podem estar entre os severamente afetados e mortos pela Covid-19. A falência dos sistemas de saúde, que certamente ocorrerá se o isolamento social em larga escala não for implementado, produzirá mortes em massa, não apenas em função do novo coronavírus, mas também de todas as outras doenças que podem nos atingir no dia a dia e não encontrarão possibilidade de atendimento médico adequado, como ocorreria em tempos pré-Covid-19, a despeito do sucateamento galopante que já atingia o SUS nos últimos anos.


No mundo como um todo, mas no Brasil em especial dada nossa abissal desigualdade entre ricos e pobres, também é urgente a implementação de um amplo programa nacional que garanta renda aos mais pobres, particularmente nesse momento em que tantas pessoas, com destaque para as que ocupam as posições de menor prestígio e remuneração no mercado de trabalho, estão sendo privadas de seus empregos, por demissão ou suspensão de salários, ou de fontes de renda informal, dadas as imprescindíveis recomendações de governos estaduais e municipais relativas ao isolamento social.


Finalmente, pouco sabemos ainda, por outro lado, sobre as sequelas físicas e emocionais que o novo coronavírus deixará em quem sobreviver, tendo sido infectado ou não, com sintomas variando de leves a gravíssimos no primeiro caso. Não sabemos quanto tempo demorará para se alcançar uma cura. Não sabemos se o vírus realmente desaparece de quem já o enfrentou e sobreviveu uma vez. Tudo que sabemos, no momento, é que quase nada sabemos sobre essa doença. Mas é sempre assim quando a humanidade se depara com uma nova epidemia ou pandemia. Só se pode afirmar que o vírus que a produz não está nem aí para quem você é ou à qual “grupo de risco” você pertence. Proteger a tod@s é uma obrigação da coletividade e uma tarefa a ser coordenada, da maneira mais democrática possível, pelos governos.


Mas não tenhamos dúvida acerca de algo que cientistas sociais e historiadorxs nos ensinam há mais de um século: para além das questões biológicas, na vida em sociedade, com pandemias ou não, as delícias do bem viver e dos prazeres do mundo têm sido privilégio dos homens, especialmente os ricos e os brancos. Por isso, siga as três regras básicas que historicamente sempre valeram para os tempos de peste: fique recluso, faça testagem tão logo seja possível e, acima de tudo, supere seus preconceitos. Afinal, esses também têm um poder quase infinito de produzir dor e sofrimento.



 

Quando ontem assisti às discussões e comentários sobre a substituição do ex-ministro Mandetta e algumas colocações do novo ministro Nelson Teichi que viralizaram na internet, me lembrei imediatamente dos meus amigos Luiz Mello e Jean Baptista, professores da FCS/UFG, que recentemente publicaram um texto forte e profundo sobre a questão do preconceito subjacente à ideia de “grupo de risco”, comparando o que aconteceu durante a pandemia da AIDS com o momento atual. No contexto aqui do “Ciência, Universidade e outras Ideias”, acho importante lermos com muita atenção esse texto. Pra mim, conversar com meus amigos das ciências humanas e sociais é sempre uma experiência extremamente enriquecedora... Digo, por experiência própria como pesquisador na área de ciências naturais, que nunca tinha pensado na concepção de “grupo de risco” dessa forma; para mim era simplesmente uma classificação técnica e operacional em termos de saúde...Então, temos que entender melhor os vários “lugares de fala” e, mais do que tudo, temos que defender sempre que vamos precisar de todo mundo para construir uma sociedade melhor!


Agradeço ao Luiz e ao Jean pelo interesse em divulgar suas ideias aqui no "Ciência, Universidade e Outras Ideias" e ao Tony Boita, editor da “Memórias LGBTIQ+” (ISSN 2318-6275), pela gentileza de permitir a reprodução do texto publicado originalmente lá.

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