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Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

Vexame na Ordem Nacional do Mérito Científico

Atualizado: 14 de nov. de 2021




Essa semana que passou foi agitada pela notícia de que o Presidente Bolsonaro havia concedido a si mesmo e a alguns de seus ministros honrarias na Ordem Nacional do Mérito Científico (ONMC). Na realidade a ONMC é uma ordem honorífica ligada à presidência da república criada em 1993 e que concede a personalidades e pesquisadores com destaque ou contribuições científicas relevantes uma honraria, em duas classes, Grã-Cruz e Comendador (isso me lembra sempre das “novelas de época” da Globo de quando eu era criança...). Foi regulamentada pelo Decreto no. 4115 de 6 de fevereiro de 2002. Os agraciados e agraciadas nessas classes passam a fazer parte da ordem e a fazer jus a esses títulos honoríficos. Os nomes e a estrutura dessas ordens e premiações são resquícios dos tempos imperiais e da primeira república, pelo que eu entendo, com forte tradição militar, e influenciados pelas visões positivistas e iluministas dos séculos XVIII e XIX. O Presidente da República é o “Grão-Mestre” da Ordem e o Ministro de Ciência e Tecnologia o seu “Chanceler”, e as indicações para as premiações nas diferentes classes são avaliados por um comitê técnico, com participação de membros indicados pela Academia Brasileira de Ciência (ABC) e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), dentre outros indicados pelo "Chanceler".


Os países têm diferentes maneiras de homenagear seus cientistas, como por exemplo a Medalha Nacional de Ciências nos EUA, que é uma premiação presidencial indicada pela NSF (National Science Foundation). Na Inglaterra temos as Medalhas da Royal Society, e inclusive a concessão do título mais conhecido (e mais arcaico...), de Sir ou Dame (Cavaleiros e Damas do Império Britânico; há várias categorias e detalhes) a alguns cientistas. Na Ecologia, por exemplo, lembro dos importantes pesquisadores Robert May (de Oxford), falecido em 2020, e John Lawton (do Imperial College), que foram agraciados com o título de Sir (no caso de Robert May, ele se tornou Lord May of Oxford ; muito chique, e parece coisa dos filmes de Robin Hood, não?). Karl Popper também foi sagrado cavaleiro do império em 1965! Temos claro os outros prêmios mais gerais e internacionais, sendo o Nobel o mais famoso deles.


A ONMC pode ser entendida mais ou menos nesse contexto e a última cerimônia de concessão de comendas havia ocorrido em 2018, com o ex-presidente Temer servindo como “Grão-Mestre”. Então, pelo que eu entendi, o ministro Marcos Pontes quis organizar e atualizar a ordem e conceder, agora em 2021, as comendas que haviam sido definidas pelo comitê científico da ONMC. Apesar de ser realmente algo “non sense” considerando a posição desse (des)Governo em relação à Ciência desde o início, como constantemente mencionado aqui no “Ciência, Universidade e outras Ideias” desde o seu início, diferente do que foi colocado inicialmente na mídia e na imprensa, não há nada de errado formalmente no que foi feito.


Claro que não faz muito sentido essa concessão agora, diante de tudo que tem acontecido nos últimos meses em termos de cortes e desmontes das agências de ciência e tecnologia. Não sei se Marcos Pontes achou que poderia “agradar” à comunidade científica ou aos colegas ministros e ao presidente com isso, depois de ter sido chamado de burro pelo seu colega Paulo Guedes. Parece um deboche...Mas o fato é que em um decreto de 3 de novembro de 2021 foram indicadas as honrarias nas classes grã-cruz a “personalidades” nacionais (inclusive para Paulo Guedes e Milton Ribeiro como membros do conselho da ONMC) e na classe comendador para 22 pesquisadores brasileiros de destaque, formalizando e atualizando assim a estrutura hierárquica da ONMC. Não sei bem quais foram as contribuições relevantes do ministro da Economia Sr. Paulo Guedes e do Pastor Milton Ribeiro, ministro da educação, para merecerem ficar no Conselho da ONMC, mas enfim, nada faz sentido nesse (des)Governo mesmo! Se pelo menos eles não atrapalhassem já não seria tão ruim, mas nem isso...


Mas aí aconteceu algo REALMENTE inusitado, desencadeando uma cadeia de eventos que levou a uma revolta e indignação da comunidade científica. Na verdade, a escolha dos nomes para compor a ONMC é feita de forma técnica pelo comitê científico a partir de indicações e buscas, mas foram indicados diversos pesquisadores de destaque que têm posições públicas fortemente contrárias ao (des)Governo Bolsonaro, especialmente os pesquisadores Adele Schwartz Benzaken e Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, ambos pesquisadores da Fiocruz. Adele era diretora do Departamento de HIV/Aids do Ministério da Saúde desde 2016 mas foi demitida logo no início do Governo Bolsonaro após publicar uma cartilha sobre prevenção de doenças destinada a homens trans. Já Marcus Vinícius foi responsável por experimentos mostrando a ineficácia da cloroquina no tratamento da COVID-19. Aparentemente ninguém da Casa Civil ou do MCTI prestou atenção nesse “detalhe”, mas não demorou muito tempo para que eles percebessem o que tinham feito. Em um ato explícito de censura e perseguição política aos cientistas brasileiros, e para a surpresa de todos, Bolsonaro publicou um novo decreto no dia 05/11/2021 que REVOGOU a concessão da comenda da Dra. Adele e do Dr. Marcus Vinicius!!! A notícia se espalhou rapidamente nos grupos de ‘WhatsApp’ e nas redes sociais, a incredulidade levando muitos (eu inclusive) a procurar as fontes originais, pois realmente se trata de algo muito sério. Não demorou a chegarem as confirmações do absurdo e imediatamente tivemos a reação de várias sociedades científicas, como ABC, SBPC, FioCruz, e tantas outras. O epidemiologista Cesar Victora da UFPeL já havia recusado a homenagem, e hoje, dia 06/11, começou a circular uma carta de renúncia coletiva dos agraciados, publicada agora à tarde no site da ABC. Realmente, era a única coisa sensata a ser fazer! Parece que não há mesmo limite para o estrago que esse (des)Governo pode fazer quando se trata de educação, ciência e tecnologia, cultura, artes...É de jogar a toalha mesmo, estamos cavando e cavando o fundo do poço, mas pelo menos continuamos protestando!


Me perdoem a rápida egotrip, mas esse episódio todo me lembrou de quando recebi a notícia, no final de 2018, de que eu havia sido agraciado com a comenda da ONMC. Foi uma surpresa boa, claro que é sempre bom ter esse tipo de reconhecimento! Confesso que nunca tinha prestado atenção na ONMC, recordava vagamente de imagens na TV de pesquisadores brasileiros recebendo medalhas no Palácio do Planalto, mas sem mais detalhes. Vamos lembrar que os cientistas, pelo menos na visão sociológica mais clássica e “Mertoniana” da Ciência, trabalham principalmente visando “reconhecimento”, esse é o motor que leva a ciência em busca de seus ideais de comunismo, universalismo, desinteresse e ceticismo organizado. Então, todas essas homenagens e títulos fazem sentido. Claro, como sempre esse título de “comendador” também não vem acompanhado de nenhum prêmio material, nenhum valor em dinheiro ou recurso para pesquisa (na verdade só gastei dinheiro para ir a Brasília, tive que comprar um terno novo que nunca mais usei...). De qualquer modo, quando divulguei a notícia entre as pessoas mais próximas, um amigo querido já me chamou atenção: “...mas você vai receber a medalha do presidente golpista? ”. Opa, verdade, tem razão...Apesar do desconforto e embora a situação econômica já começasse a se deteriorar, com sinais claros de perda de recursos no CNPq, CAPES e FINEPE, não havia nada tão grave e explicitamente contrário à ciência acontecendo na época. Certamente vejo que hoje era uma posição ingênua, mas de qualquer modo havia esperança de se reestabelecer algo de bom na campanha presidencial de 2018, que estava em curso...Haddad Presidente, fazia todo sentido!


Assim, fomos a Brasília, eu, minha família e alguns amigos mais próximos, em meados de novembro de 2018, e recebi a comenda no Palácio do Planalto junto com duas colegas queridas, a Prof. Mercedes Bustamante e a Prof. Concepta Margaret “Connie” McManus, ambas da UnB, dentre muitos outros colegas pesquisadores. A comenda não estava sendo concedida há algum tempo, de modo que houve muitas indicações em 2018 (Connie estava viajando e não compareceu à cerimônia, mas recebeu a honraria depois). Nosso reitor aqui da UFG, o Prof. Edward Madureira Brasil, estava em Brasília nesse dia para uma reunião da ANDIFES e foi ao palácio para prestigiar o evento. Tudo certo então...


Só que logo depois da cerimônia da ONMC tivemos o resultado do 2º. Turno e a esperança de resolver os problemas do golpe não se concretizaram. Muito pelo contrário, passamos a ter um (des)Governo claramente anti-ciência e anti-educação a partir de 2019, como já estava se delineando na campanha presidencial. Mas acho que todos subestimamos o tamanho do estrago e o nível de ignorância que se aproximava, como temos discutido aqui desde meados de 2019. Tudo ficou ainda mais claro e explícito com as atitudes do Governo durante a pandemia da COVID19...Na realidade o problema não está apenas nas atitudes do Governo, mas na liderança que ele consegue exercer em um número absurdamente elevado de pessoas...Assim, tudo isso tem revelado o lado mais sombrio da nossa sociedade, algo que realmente não era perceptível até muito pouco tempo (pelo menos não para mim). Os eventos dessa semana são só mais uma prova de tudo isso.


Em 2019 cheguei a dizer a um outro colega, em uma reunião na CAPES, que eu tinha vontade de devolver a comenda, já que eu sabia desde então quem seria, formalmente agora, o Grão-Mestre da ordem (ELE NÃO!!!!). Ele havia brincado comigo me chamando de “comendador” e, diante de minha resposta, ele me disse sabiamente que eu não tinha sido indicado por ele (nem mesmo pelo Temer...) e que se eles achassem ruim o que eu pensava do (des)Governo, eles é que pedissem a comenda de volta, por não me “acharem digno”. De fato...Vejam que foi JUSTAMENTO ISSO que aconteceu agora com nossos colegas Adele e Marcus Vinícius!


Confesso aqui que fiquei com uma pontinha de inveja dos meus colegas agraciados em 2021, que tiveram seu merecido reconhecimento, mas que, ao mesmo tempo, tiveram a oportunidade de fazer a coisa certa e protestar no mais alto nível contra os desmandos desse (des)Governo, em todas as áreas. Espero que, em uma próxima concessão, quem sabe em 2022 e com um Governo minimamente civilizado, essas indicações sejam refeitas e que eles e elas possam ser então formalmente agraciados. Mas o sentimento da Academia, nesse momento, é que esses pesquisadores e pesquisadoras representam o que temos de melhor na nossa Academia!



Cerimônia de concessão da comenda da ONMC em 2018.


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